“Há casos em que um homem enlouquece por excesso de amor ou de dor, e não se vê à primeira vista como pode ser culpado. Mas se o culpam significa que é superior a todos, que o invejam e querem morto”. (Giovanni Papini, in Relatório sobre os homens)
Para uns dias de férias no Algarve, escolhi no hotel a melhor suite que, por ser caríssima, não estava ocupada.
Devidamente instalado, de limusina e condutor à porta, diariamente fazia os meus percursos a pé, que por norma eram extensos.
Em Tavira, passava pelo quartel militar e pela (então) carrasca Atalaia – onde ainda se “sentem” vestígios de lágrimas, suor e pele arrancada, deixados no pavimento, pelos instruendos dos cursos de Sargentos Milicianos, que ali se “injectavam” por garbosos oleiros, com o fim de mandarem carne para os açougues do capim do ex-ultramar – e atravessava a velha ponte do rio Gilão. E assim descontraído, reflectindo, caminhava sob este louco verão de 2025 que a todos derretia.
De maneira que, nessas caminhadas, com o objectivo de endurecer os músculos e manter o peso recomendado de 62 quilos, entre muitas pessoas que se cruzavam comigo, uma destacava-se diariamente:
cavalheiro dos seus sessenta anos, baixo, magro, moreno/amarelado, cabelos soltos e de tamanhos diversos, de barba inserta no magro rosto, de olhar penetrante, de admiração atada, desconfiado talvez e, pelas costas, dependurava uma alpaca/gabardina, muito usada e ensebada.
Intrigado por “ter de o encontrar” na caminhada diária, comecei por respeitosamente o saudar, embora me parecesse que não era correspondido. Insisti na saudação nos mais dois ou três encontros seguintes e confirmei que o cavalheiro se desviava da saudação.
Então parei, barrei-lhe o caminho e praticamente obriguei-o a dar-me uma explicação pela sua estranha atitude. Descontraidamente olhou-me sem medo e afirmou:
– Não, não. Não sou cego nem surdo-mudo. E a sua pessoa é-me indiferente como indiferente é o cumprimento que me dirige. Não respondo a saudações e muito menos falo com alguém. O senhor teve sorte, pois estou hoje cheio de raiva e odeio tudo que observo. É por isso que falo consigo, porque o odeio, porque me repugna a sua presença e, só não o atiro ao rio Gilão porque tenho medo de ficar bem-disposto.
– Mas não entendo esse seu estado de espírito! – afirmei.
– Nem tem de entender. Recuso conhecer alguém, não quero falar e se o faço, é porque sinto raiva. Nos dias de boa disposição rejeito conhecer os homens, porque concluí que falaram demasiado de si mesmos. Verifiquei que a maioria deles eram recipientes de aromas nauseabundos e com complexos de toda a ordem. Nada valem, nada querem, nada projectam. Eu sou diferente. Fui professor, ensinei arquitectura, desenho, pintura, filosofia e boas maneiras. Formei frustrados, tarados, inteligentes, complexados e, até psicopatas recuperei. Um dia, esses mesmos chamaram-me ditador, louco, e exigiram que fosse oficialmente louco, pelo que, deixei de poder ensinar. Portanto, sinta a minha raiva, saboreie-a, odeie-me para seu bem, pois se tenta dar-me amizade, terei de conhecer os seus defeitos e não quero. Prefiro desconhecer os homens. São-me mais úteis marginalizando-os ou tendo conhecimento dos seus funerais. Por isso não diga quem é, o que faz ou quais são os seus ideais. Dou-lhe apreço se não me saudar, se fingir que não me vê e se me deixar passar por entre o meu próprio silêncio. Apelo aos seus defeitos para deixar-me ser quem sou, como penso e, sobretudo, respeite meu (imposto) silêncio. Aceite o desprezo que tenho por mim mesmo e basta que aceite ter à sua frente um homem que, pelo que comigo outros desabafaram, seja melhor que eles. Todos aqueles que conheci eram selvagens sem freios; avarentos que acarinhavam os pobres; anarquistas que pregavam a obediência; mentirosos que buscavam minuto-a-minuto a sinceridade; nervosos que recomendavam a paciência; ladrões que por vezes praticavam actos de generosidade; médicos doentes; homens de fina imagem, mas desonrados; escritores e poetas que ostracizavam a literatura, entre outros.
Continuando a sua marcha, o resmunguento professor fazia-se ouvir gesticulando rua abaixo. Sem que se apercebesse, fiquei-me para trás e continuou a ecoar-se. Porque gesticulava permanentemente deixou cair dos ombros a alpaca velha e codeada. Entrou na velha ponte sobre o Gilão e virou à direita na rua paralela à Avenida Cândido dos Reis.
Como a luz pública era fraca e devido à distância que já nos separava, deixei de ver o professor.
Então – sem saber quem era o “oficialmente louco” – em pensamento, desejei que Deus o acompanhasse.
(O autor não segue o novo Acordo Ortográfico)