No dia 07 de Março passado, um velho amigo que não vinha a Portugal há muitos anos, procurou-me e não o reconheci.
Fisicamente elegante, distinto no vestir, foi necessário exibir-me uma foto antiga para saber que se tratava do Pastilhas, ex-militar que comigo escapou das balas no Niassa e Cabo Delgado, Moçambique. Nesses tempos, o Pastilhas era forte, militarmente abandalhado, com dentes de mula, nariz curvo e de olhar mortiço.
Porque me pediu, indiquei-lhe o mais luxuoso hotel da cidade e conversamos bastantes horas. Falamos de si, de mim, de política à portuguesa, da violência doméstica, divórcios em catadupa, da Justiça lenta e agonizante que temos, da corrupção como lema de vida de tantos, das reformas que os governantes repelem, da crónica dívida que temos, do assalto ao paiol de Tancos, dos incêndios perpetrados por selvagens que não são presos, das dezenas de mortos em Pedrógão que António Costa abandonou para ir de férias, do julgamento de Sócrates que envergonha a democracia e pode até ser indemnizado pelo Estado, etc. etc.
Por tudo isso, concluiu o Pastilhas, “o povo não vê, não ouve, ressona”.
O meu amigo vive em Nagpur, na Índia, e contou que na sua modesta cidade de Nagpur, existe uma Clínica de Almas, de cirurgia inovadora, devido à falta de valores no homem e de directores espirituais que, como em Portugal, vão ficando raros.
- Mas, desculpa a interrupção, Pastilhas. Que género de cirurgia se faz à alma e como se conclui que há almas doentes?
- Bom. Devo dizer-te que vim a Portugal a mando desse grande cirurgião, o senhor Noack, porque conhece as enfermidades espirituais de vários países do mundo, em especial as vossas. O senhor Noack, natural de Mumbai-India, está na disposição de montar uma clínica de almas em Portugal, Bruxelas e outros países, e investir vinte mil milhões de Euros, criando desse modo dois mil postos de trabalho. Actua o senhor Noack, com métodos especiais-espirituais e, afianço-te, que nunca recorreu à hipnose, à lavagem de cérebros ou anestesia. É que as almas ganham defeitos que podem ser amputados: como cegueira, orgulho, sintomas de cotovelite (ciúmes), o gosto da rapacidade e outros! Resolve também o senhor Noack o problema de virtudes excessivas, cuidados excessivos e tudo que estorve as almas. São cirurgias com precisão, sem dor, mas não de borla, pois claro!
Desculpa interromper-te novamente, Pastilhas. Mas não se tratando de curar almas através da espontânea confissão de pecados ou de arrependimento, será Noack um psicólogo, psiquiatra, neurólogo ou aldrabão que, por isso mesmo, tem sucesso nas almas fragilizadas?
- Repara, companheiro. Freud estudou os distúrbios mentais, as causas nervosas e a ausência de moral no homem. Mas, Noack, porque é Indiano e convicto seguidor do Nazareno, tornou-se especialista infalível, como cirurgião do espírito, por haver almas que crescem de mais: ficam jactantes, incham e nada concretizam. Há a podridão da cultura injectada, do pedantismo doentio, conforme se verifica nos Ministérios ou instituições. Enfim, há defeitos de todos os graus que é necessário anular. “Uma alma limpa é a força do homem, tal como a electricidade é a força do motor ou do gerador”. Não será melhor para o homem “entrar com um só olho ou uma só mão na Vida Eterna, do que ser lançado na geena do fogo?
Mas então justifica-se tal clínica em Portugal? – perguntei.
Claro que sim! Já tendes alguns milhares de almas imperfeitas que vos fizeram perder o selo de “nobre povo, nação valente e imortal”! Clínica, sim. Pois “quem investe na alma, colherá do Espírito a vida eterna!
Amigo, quanto custa substituir ou sacar da alma dez defeitos?
Há defeitos que já têm pêlos ou estão rançados. Nestes casos seriam cinquenta mil euros por cada dez defeitos sacados. Quanto à substituição da alma, resolve-se também, uma vez que há por aí muita alma perdida e, adquirem-se facilmente. Mas esse serviço é polémico, pois pode passar a ser homem de alma pasmada, mentiroso, impostor e carregar até com os outros seus três defeitos, como já aconteceu à alma de vários políticos que têm governado Portugal, bem como noutros países da Europa.
De imediato fiquei confuso, talvez estupefacto com tais serviços, mas que provocaram em mim momentos de silêncio e de olhos cerrados. Assim, acabei por ficar convencido da necessidade de tal cirurgia.
No dia seguinte o meu amigo regressou a Nagpur e garanti-lhe que iria iniciar a ajuda na legalização da clínica em Lisboa, no Porto ou Braga, pois confirma-se que é urgente, e dela, milhões de portugueses poderão beneficiar, sem dúvida alguma!
(O autor não segue o acordo ortográfico de 1990)