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Renascer das cinzas

O Tempo da Quaresma convida-nos a renascer das cinzas. Nem é por acaso que começa com a Quarta-feira de Cinzas, assim chamada em virtude do rito que nesse dia acontece, na celebração da Eucaristia: a imposição das cinzas. Resultado da combustão dos ramos de oliveira do anterior Domingo de Ramos, as cinzas recordam-nos a matéria de que somos feitos, a nossa humana condição, efémera e frágil, no dizer da frase que acompanha o rito: “Lembra-te, homem, que és pó da terra e à terra hás-de voltar” [cfr. Gn 3, 19]). A par dessa, é proferida uma outra que recorda o mote do Tempo da Quaresma: “arrependei-vos e acreditai no evangelho” (Mc 1, 15).

Genericamente, a cinza é o que resta do fogo que devora e purifica, o fruto da combustão dos materiais inflamáveis. Excetuando o azoto e algum enxofre que se perdem na queima da matéria orgânica, concentra em si todos os nutrientes (sobretudo potássio e cálcio) de que uma planta necessita, na proporção quase exata. É, por isso mesmo, um fertilizante perfeito, um excelente adubo natural, um ótimo corretor do pH dos solos e um afugentador eficaz da bicharada indesejável.

No Antigo Testamento, aparece relacionada com o saco (veste grosseira e, por isso, nada cómoda), em contexto de jejuns, choro, luto e lamentações (Est 4, 1-3; Is 58, 5; Jr 6, 26; Dn 9, 3; Jn 3, 5). Por vezes, também indica aflição ou consternação (2 Sm 13, 19). No Novo Testamento, é sinal eloquente de conversão e penitência (Mt 11, 21; Lc 10, 13), assim como de purificação (Hb 9, 13).

Sugerindo, à partida, a morte (vida consumida pelo fogo), as cinzas remetem para a esperança numa vida nova que daí renasce. Renascer das cinzas é, de facto, uma expressão carregada de esperança, tal como sugere o mito da fénix (pássaro da mitologia egípcia e grega) que, quando morria, entrava em autocombustão e, passado algum tempo, ressurgia das próprias cinzas. Aplicando o mito ao ser humano, Friedrich Nietzche afirma que “um homem precisa de se queimar nas suas próprias chamas para poder renascer das cinzas”.

Em última instância, as cinzas estão relacionadas com a vida que se esvai ou que ressurge e que, por vezes, se esvai para ressurgir. Lembram-nos que, para haver vida, algo em nós tem de morrer. A Quaresma também nos recorda isso mesmo, quando nos chama à conversão. De facto, só é possível renascer das cinzas pelas vias da correção e do afastamento de tudo o que é indesejável.

No início da Quaresma, as cinzas proporcionam-nos “um humor saudável: uma relativização das nossas certezas, uma consciência das nossas limitações, uma ironia quebrando o gelo dos nossos rostos artificialmente compungidos e das nossas teorias ridiculamente absolutizadas” (António Rego, Palavra entre palavras, p. 22).

Lembram-nos que, por mais forte e saudável que seja, a vida humana é sempre frágil e, por vezes, breve; a história diz que facilmente se esfuma e se reduz a cinzas, que somos feitos do pó da terra que calcamos e a que havemos de voltar.

Recordam-nos ser necessário e incontornável o arrependimento e a penitência pelos pecados cometidos (“pensamentos, palavras, atos ou omissões”), bem como a mudança de vida (conversão).

Sugerem como são imperiosas a purificação interior e a mudança de mentalidade, aceitando a proposta da vida nova feita pela Palavra de Deus: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8, 3).

O rito da imposição das cinzas é sugestivo e de profundo alcance simbólico. Tem em si uma tal força expressiva que diz bem o propósito que poderemos eleger para esta Quaresma: renascer das cinzas.

*Professor na Faculdade de Teologia – Braga e Pároco de Prado (Santa Maria)


Autor: P. João Alberto Correia
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15 fevereiro 2021