Sobre as 613 determinações da Lei – 248 prescrições e 365 proibições –, não havia consenso acerca da mais importante.
O debate era aceso entre peritos, rabinos e mestres.
Havia quem defendesse que todas as normas eram igualmente relevantes.
Mas também não faltava quem as hierarquizasse em nome de um princípio superior, a que chamavam «kelal».
Tal princípio, por vezes, era encontrado através da conexão entre dois textos com uma característica comum.
Tal método – denominado «gezera shawa» – consistia em interpretar um texto através do outro.
Foi assim que Jesus apresentou o Seu «kelal» concatenando Deuteronómio 6, 4-5 e Levítico 19, 18.
O elemento comum é a fórmula verbal «amarás». Eis o primeiro texto: «”Amarás” o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças» (Dt 6, 4-5). O segundo é este: «”Amarás” o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19, 18).
Jesus é taxativo. Entre os 613 imperativos, «não há mandamento maior do que estes» (Mc 12, 31).
Surpreendente não é que Jesus mencione a passagem do Deuteronómio. Afinal, trata-se da «Shemá», a mais célebre confissão de fé do judaísmo. Espantoso é que lhe associe o versículo do Levítico que preceitua o amor ao próximo como a nós mesmos.
Isto significa que, para Jesus, o reconhecimento da transcendência de Deus é inseparável da dedicação ao próximo.
Se não é possível amar o próximo sem amar a Deus, é inteiramente impossível amar a Deus sem amar o próximo: «Quem ama a Deus, ame também o seu irmão» (1Jo 4, 21).
Hoje não nos apercebemos da originalidade deste imperativo. Como nota John Meier, nem no Antigo Testamento, nem na literatura intertestamental, nem em Qumran, nem em Fílon de Alexandria encontramos uma tal conexão.
«Colocar o amor ao próximo a par do amor a Deus – sintetiza Daniel Marguerat – só pode ser descoberto nos lábios de Jesus».
A novidade não está tanto na ligação entre os dois «amores», mas na conceção de «próximo».
Para os judeus, próximos são os compatriotas (cf. Lev 19, 18) e os membros da mesma comunidade (ex: fariseus, Qumran).
Jesus vai mais longe: «Ouvistes o que foi dito “Amarás o teu próximo” (Lev 19, 18) e “odiarás o teu inimgo”. Eu, porém, digo-vos “Amai os vossos inimigos”» (Mt 5, 43-44).
É verdade que, na Escritura, não existe nenhuma injunção para odiar o inimigo, mas a formulação pressupõe que a proteção dispensada ao compatriota não se estende ao estrangeiro nem ao inimigo.
Jesus baseia-Se no amor ilimitado de Deus, que é para sempre e para todos, bons e maus (cf. Mt 5, 45-47). E nós?
Só quando o «kelal» de Jesus for a única lei é que a humanidade voltará a ser humana. Sem precisar de qualquer outra legislação!