Viver o Reino de Deus, mais do que o construir, é uma das conversões mais urgentes para a Igreja de hoje. Durante décadas habituámo-nos a falar de “construção do Reino”, como se a fé fosse sobretudo um estaleiro religioso, com planos, metas e indicadores. Sem negar a importância de organizar e avaliar, creio que essa linguagem já não chega. O Evangelho sugere outra gramática: o Reino não é um projeto que erguemos com as nossas forças, é uma vida recebida e aprendida no tecido concreto da vida comum, com feridas e possibilidades.
As ciências da complexidade ajudam-nos a perceber o alcance desta mudança. Falam-nos de “emergência” quando, a partir de interações locais simples, surgem formas novas de organização que não se explicam só pela soma das partes. Não há um comando central; há uma aprendizagem contínua, feita de ajustes e conflitos, até que se estabilizam novos equilíbrios. Se olharmos para a Igreja com esta lente, percebemos que a sua vitalidade não começa nos organogramas nem nos documentos, mas em pequenos gestos repetidos com fidelidade: grupos que se reúnem para ler a Palavra de Deus, vizinhos que cuidam de quem está só, comunidades que celebram a Eucaristia e dela saem mais disponíveis para servir.
O problema é que, em muitos contextos, nos deixámos capturar por uma mentalidade de manutenção. Gastamos energias a preservar edifícios, agendas e serviços, enquanto se apaga a criatividade que fez nascer essas estruturas. Falta-nos, talvez, a coragem de perguntar: que condições concretas podem gerar hoje pertença, continuidade e missão? Que práticas simples, se forem cuidadas e acompanhadas, podem dar origem a uma comunidade viva, e não apenas a uma instituição funcional, mas desabitada?
Quando rezamos “venha a nós o vosso Reino”, estamos a confessar disponibilidade para que o dom de Deus nos desinstale e reoriente. O Reino acontece quando um profissional recusa a corrupção, quando uma família se torna espaço de reconciliação, quando um cristão assume o trabalho como lugar de justiça e cuidado. O Reino vive-se assim: convertendo práticas, e não fugindo das responsabilidades.
Esta perspetiva tem também consequências para a vida pública. Se o lugar do Reino é o mundo comum, então a Igreja não o possui nem o controla. É dele sinal e serva. A sua missão não é dominar o espaço público, mas tornar visível que é possível organizar a vida de outra maneira: mais justa, mais hospitaleira, mais reconciliada. Paróquias, movimentos e comunidades religiosas que investem em pequenos grupos de escuta da Palavra, em economias solidárias e redes de cuidado nos bairros deslocam recursos da manutenção para processos realmente geradores de vida.
Há, porém, uma condição sem a qual tudo isto se torna retórica: aprender a lidar com o conflito. Uma Igreja que idealiza o consenso e tem medo do dissenso tende a esmagar a inovação e a silenciar os mais frágeis. Pelo contrário, quando o desacordo é acolhido e discernido, torna-se ocasião de reorganização criativa. A sinodalidade, longe de ser um slogan, é esta arte de conversar no Espírito: cada um fala a partir da sua experiência, a comunidade escuta, verifica à luz do Evangelho e decide, assumindo riscos. Estruturas menos hierarquizadas e mais hospitaleiras ao conflito honesto abrem espaço a ministérios novos, formas inéditas de corresponsabilidade e a um exercício menos clerical da autoridade.
Tudo isto só se sustenta se voltarmos à fonte: a lógica do dom. A Igreja não existe por direito próprio; existe porque recebe, em cada geração, a vida que anuncia. Quando a gratuidade deixa de ser apenas uma palavra bonita e passa a organizar tempo, dinheiro, prioridades e estilos de governo, então o Reino começa a tornar-se visível. Comunidades cristãs que aceitam ser pequenos “laboratórios de bem comum” nos interstícios do território, sem nostalgia de poder nem obsessão identitária, tornam-se sacramentos discretos de outra forma de viver. Nelas, o Evangelho não se impõe como força, mas propõe-se como possibilidade real de humanidade mais justa e reconciliada.