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Desinformação em ebulição, democracia em banho-maria

André Ventura acusou o Presidente da República de se deslocar a Berlim para participar num festival de hambúrgueres. A acusação tornou-se viral, suscitando a indignação de quem não verificou a tradução nem o contexto. Afinal, tratava-se da Festa dos Cidadãos (Bürgerfest), uma celebração da democracia e da participação cívica. Confrontado com o “lapso”, o líder do Chega não fez qualquer mea culpa. Foi “apenas” um erro de tradução. O que importa é sublinhar que Marcelo Rebelo de Sousa – sínédoque de toda a classe política – anda a passear às custas do contribuinte em vez de trabalhar em prol dos que o elegeram. Então, não é que já contabiliza 1.550 viagens presidenciais! “É só fazer as contas”, já dizia António Guterres. Empossado a 9 de março de 2016 – há 3.472 dias –, teria efetuado uma deslocação oficial cada dois dias, confinamento incluído. No cardápio do populismo, a narrativa sempre atropela o plausível.

O líder do Chega tem repetido até à exaustão uma série de inverdades: “os presos ganham mais do que os bombeiros por hora”; “os filhos de imigrantes têm prioridade nas vagas das escolas portuguesas” ou “só 14% das pessoas de etnia cigana vivem do seu trabalho” e por aí adiante. Embora desmentidas por diversos estudos, tais afirmações acabam por inquinar o debate. Presos, imigrantes, ciganos e outros bodes expiatórios passam a carregar a culpa dos males deste cantinho à beira-mar plantado. O objetivo é inscrever estes temas no epicentro do espaço público, a tal ponto que mesmo os que reconhecem tratar-se de falácias se deixem enredar e acabem por admitir que tais grupos são, afinal, a raiz de alguns problemas. O bispo de Setúbal sentiu-se inclusivamente na obrigação de recordar que é incompatível ser cristão e racista. A classe política – que, verdade se diga, também se pôs a jeito – é outro dos alvos preferenciais. O contexto socioeconómico degradou-se de tal forma que basta erguer o punho contra o sistema e reclamar uma “oportunidade” de varrer “50 anos de corrupção” para legitimar a ilusão da mudança.

Um relatório do LabCom (Universidade da Beira Interior), em parceria com a ERC, analisou a presença digital dos partidos durante as Legislativas de 2025. No período entre 7 de abril e 19 de maio, foram monitorizados 4.514 conteúdos nas redes sociais Facebook, Instagram, X, TikTok e YouTube, com o intuito de mapear casos de desinformação. O estudo registou um crescimento de 160% face às Europeias de 2024, com 16 casos diretamente associados às páginas oficiais dos partidos, o que representa apenas 0,4% do total das publicações. O Chega concentrou 81,3% das ocorrências, com o PS, PSD e CDS a somarem um caso cada. A maioria dos conteúdos falsos surgiu em formato vídeo, recorrendo a montagens ou edições, e destacou-se ainda a circulação de sondagens não validadas, falsos órgãos de comunicação e peças manipuladas para desacreditar os media. Embora a escala não seja alarmante, a repetição e a subtileza de certas mensagens potenciam a erosão da confiança pública. E não podemos esquecer que grande parte da desinformação circula fora das páginas oficiais.

Quem quer condenar a todo o custo dispensa a verdade e despreza a razão. Sempre encontra justificações para legitimar os seus atos, por mais absurdos que sejam, como bem ilustra a fábula de Esopo. Conta-se que um lobo, desejoso de devorar uma ovelha, a acusou de turvar a água do riacho onde bebia. A ovelha respondeu que tal não era possível, pois encontrava-se a jusante. O lobo não desistiu: inventou novos argumentos, que a ovelha foi rebatendo um a um. Excedido, concluiu de forma arbitrária: “Se não foste tu, foi um dos teus”. E devorou a presa. Para os predadores, o rio está sempre turvo. Hoje, agita-se entre a desinformação em ebulição e a democracia em banho-maria. Mas os media têm a sua quota-parte de responsabilidade: em vez de priorizar um jornalismo de investigação consistente, preferem amiúde replicar agendas alimentadas pela controvérsia, dar palco às frases mais virais e ceder ao sensacionalismo fácil. A lógica do espetáculo raramente é boa conselheira.

Manuel Antunes da Cunha

Manuel Antunes da Cunha

20 setembro 2025