A ideia de utopia acompanha o pensamento humano desde a Antiguidade, refletindo os sonhos e as inquietações de cada época. Desde a cidade ideal de Platão, passando pela ilha igualitária de Thomas More, até às projeções futuristas de Nick Bostrom, podemos traçar um percurso que revela não apenas o modo como imaginamos sociedades melhores, mas também os desafios e os limites da nossa condição.
Na Grécia Antiga, Platão apresentou em “A República” uma das primeiras formulações sistemáticas de uma comunidade ideal. A sua proposta assentava numa organização hierárquica clara: filósofos-reis no governo, guerreiros na defesa e produtores responsáveis pelo sustento material. Para Platão, a justiça residia precisamente em cada grupo cumprir a sua função sem invadir o espaço do outro. A educação ocupava um papel central, formando os governantes através de um rigoroso processo de conhecimento e disciplina. A comunidade de bens e até de família entre as classes dirigentes revelava o esforço de eliminar o egoísmo e a corrupção. Era uma utopia fundada na ordem, na racionalidade e na subordinação do indivíduo ao bem comum.
Séculos mais tarde, em pleno Renascimento, Thomas More retomou o ideal utópico com uma abordagem distinta. Na obra “Utopia” (1516), descreveu uma ilha fictícia onde não existia propriedade privada, todos trabalhavam seis horas por dia e os frutos do trabalho eram repartidos igualmente. Havia uma forte valorização da educação e uma tolerância religiosa notável para a época. Diferente de Platão, que defendia uma sociedade hierárquica e estável, More concebeu uma comunidade igualitária e participativa, governada por assembleias e eleições. A sua utopia tinha um duplo carácter: era simultaneamente um projeto imaginário e uma crítica mordaz às desigualdades, à corrupção e à ganância da Europa do século XVI. Se Platão sonhava com a cidade justa, More vislumbrava a sociedade igualitária.
Em fevereiro do corrente ano de 2025, foi publicada a tradução portuguesa da obra de 2024, do sueco Nick Bostrom, que introduz um novo horizonte para o debate utópico: a “Utopia Profunda”. O autor tornou-se uma das principais vozes contemporâneas no debate sobre o futuro da inteligência artificial (IA). Em Superinteligência, obra publicada em 2014, apresenta um estudo profundo sobre os cenários possíveis caso a humanidade venha a desenvolver uma IA com capacidades que superem largamente a inteligência humana. O livro não é apenas um exercício especulativo, mas uma análise rigorosa de riscos existenciais e de como poderemos preparar-nos para enfrentá-los. O ponto central do livro é a chamada “questão do controlo”. Uma vez criada, uma superinteligência poderia rapidamente aumentar as suas próprias capacidades (um processo de “explosão de inteligência”), tornando-se impossível de conter. A dificuldade é garantir que tal entidade, dotada de autonomia e poder decisório, atue de acordo com os interesses humanos.
Na “Utopia Profunda” não se trata apenas de reorganizar instituições humanas, mas de imaginar o futuro da própria espécie. Através da inteligência artificial, da biotecnologia e do transumanismo, Bostrom especula sobre um mundo em que a escassez e o sofrimento possam ser superados. A sua visão não se limita a eliminar o negativo; pretende maximizar o potencial positivo da experiência consciente — prazer, conhecimento, relações interpessoais e liberdade em níveis inimagináveis. Nesta utopia, o trabalho humano seria opcional e os limites biológicos transcendidos. É uma visão tão promissora quanto inquietante, pois depende do uso responsável de tecnologias que também comportam riscos existenciais.
O percurso destas três utopias mostra-nos que o conceito de futuro ideal evolui de acordo com os problemas e esperanças de cada época. Platão procurava ordem e justiça numa polis marcada por conflitos; More sonhava com igualdade e racionalidade numa Europa desigual e turbulenta; Bostrom imagina uma humanidade liberta das suas limitações através da ciência e da técnica. A utopia, longe de ser apenas um devaneio, é também um exercício crítico e criativo, que nos obriga a questionar a realidade presente e a projetar novos caminhos para o futuro.
Talvez a função mais duradoura das utopias não seja fornecer modelos perfeitos, mas sim manter viva a inquietação diante daquilo que existe. Entre a cidade justa, a ilha igualitária e a utopia profunda, abre-se um espaço de reflexão sobre quem somos, quem queremos ser e até onde estamos dispostos a ir para transformar o possível em realidade. A questão é: se nem a República Platónica nem a Utopia de More foram alguma vez implantadas, será que o mesmo não ocorrerá com a Utopia Profunda de Bostrom?