Quando, há mais de cinquenta anos, cheguei a Braga corria uma estória que dizia haver um senhor padre já de vetusta idade, que, nas suas idas para ver o futebol, estava sempre rodeado de miúdos. O segredo era que ele levava os bolsos da batina cheios de rebuçados, usando-os como artefacto para aliciar os mais pequenos, pois, quando o árbitro cometia, em seu entender, algum erro para com o seu clube, ele dizia: chama-lhe tu (algum impropério menos digno da sua condição eclesiástica), que eu não posso... Ao que parece era bem sucedido, pela quantidade de atraídos às suas ardilosas benesses ou então muito irascível a ver futebol...
1. Causou alguma celeuma – dessas de gente pequena ou hipersensível – o episódio, no parlamento português, de um deputado chamar a outro ‘fanfarrão’, causando trocas de argumentos bem mais infantis do que as birras de crianças ou as quezílias de vizinhos já zangados de outros momentos. Houve quem considerasse quase abusiva a intervenção do presidente da AR, mas os argumentos desfilados manifestam bem que algo mal vai no reino da semântica ou nas lutas intestinas de certas forças partidárias...
2. Descubramos o significado de ‘fanfarrão’, perscrutando sinónimos que nos podem deixar ainda mais curiosos sobre o nosso futuro coletivo com tais intervenientes. ‘Fanfarrão’ é um adjetivo ou um nome masculino, significando: aquele que se arma em valente sem o ser, bazofiador ou ainda aquele que se gaba exageradamente de feitos ou de qualidades que muitas vezes não lhe pertencem, isto é, gabarola. É uma palavra que pode ter tanto origem árabe: ‘farfâr’ (leviano) ou proveniente do castelhano: ‘fanfarrón’, fanfarrão.
3. Atendendo às circunstâncias e aos intérpretes do ato, o assunto em análise quase cheirou a fim de regime, pois a discussão suscitada não tinha razão alguma, embora a figura classificada de fanfarrão é muito pior do que isso, e com as suas tropelias quase infantis tenta arrastar as questões políticas, sociais e económicas para a lama dos seus insondáveis interesses. Por isso, em vez de ofensa, classificá-lo de fanfarrão é elogio quase maquiavélico e/ou de baixa moral/ética... O epíteto assenta-lhe bem!
4. Não será que estamos a viver num estado – como entidade política ou como situação de vida – socialmente fanfarrão, onde muitas pessoas cultivam esse modo de estar, sem disso se darem conta? Ao vermos, de forma ponderada e sensata, o fausto e a exibição de tantos/as nas nossas ruas e praças, isso não é comportamento fanfarrão tácito ou explícito? Não teremos atingido uma nova fase da fanfarronice ao sermos confrontados com tantas pessoas que se tentam afirmar pelo que mostram ou exibem do que pelo que são, de verdade? Apesar de tudo, mostrar-se (e ser) fanfarrão não será mais defeito do que virtude?
5. Dá a impressão que o estado de fanfarrão é uma outra forma, mais popular e sem filtros, de captar a vaidade, pessoal, social, de grupo ou em bolha. Com efeito, certos tiques de vaidade parecem não passar de tiques de fanfarronice: os títulos (ditos) académicos que não são mais do que de instrução básica e elementar; as festas e festanças em que vemos tanta gente a mostrar-se, mais pelo papel de embrulho do que pelo valor do que é embrulhado; certos cargos de âmbito social (público, social ou mesmo eclesial) parecem ainda enfermar da mesma doença, sem que dela se tenha total consciência e aceitação...
6. Numa leitura e apreciação destes aspetos sob o prisma da doutrina (magistério) da Igreja católica poderemos incluir o estado de fanfarrão (ou fanfarronice em geral) na versão da vaidade e da vanglória, onde cada qual se considera superior aos outros, embora se não conheça a si mesmo. Quando se toma consciência desse estado, tudo ganha novo significado e caem – à semelhança do apóstolo Paulo na sua conversão – uma espécie de escamas dos olhos e passamos a ver e, sobretudo, a ver-nos com olhos novos. Já o conseguimos?
Chama-lhe ‘fanfarrão’, que eu não posso

António Sílvio Couto
28 julho 2025