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OS DIAS DA SEMANA A participação é a arma do povo Sobre A Participação Cívica em Portugal, de José Carlos Mota

 

 


 


 

“O voto é uma arma do povo”, dizia uma personagem de um cartoon de Viegas publicado no jornal República no dia 27 de Dezembro de 1974, brandindo um boletim de voto perante um polícia que, a seguir, o interrogava: “Ah sim? Então mostre-me lá a sua licença de porte d’arma?”. Abundantemente publicitado e bastante glosado pelos cartoonistas, o slogan “O voto é uma arma do povo”, apelando à participação nas eleições para a Assembleia Constituinte, popularizou um direito constitucional que apenas o 25 de Abril de 1974 tornou possível: “O povo exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e das demais formas previstas na Constituição”.

No livro A Participação Cívica em Portugal [1], José Carlos Mota, professor do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, recorda esse slogan de há 50 anos para afirmar que o voto não pode ser hoje – como, aliás, não era quando a democracia portuguesa dava os primeiros passos – a única arma, “muito menos se usada ocasionalmente”.

A democracia, afirma o autor, reclama um esforço para se “reinventar e oferecer ao povo mais e melhores oportunidades de envolvimento e participação nas decisões sobre o nosso destino colectivo, sublinhando a nossa responsabilidade e reforçando a confiança em nós mesmos e no sistema democrático”. Sem o esforço referido, “o voto corre o risco de se tornar na arma do populismo”, o que ameaça provocar “o fim da democracia tal como a conhecemos”.

Como explica José Carlos Mota, Portugal, em consequência dos 48 anos de ditadura, possui uma “cidadania tardia, ainda muito focada no assistencialismo (através das Instituições Particulares de Solidariedade Social), no voluntariado (por exemplo em ONG) ou em temas sectoriais (ambiente ou património)”. Observa o autor que “os cidadãos têm consciência dos problemas, mas reagem tardiamente e reflectem pouco colectivamente”, daí que falte “uma cidadania estratégica de base local, com uma dimensão transectorial, que pense o futuro e se transforme numa alternativa política”. A participação não é apenas um processo, esclarece José Carlos Mota. Ela “é também esperança e narrativa de futuro”.

Quando fala de participação cívica, José Carlos Mota refere-se ao “exercício de envolvimento dos cidadãos no processo de decisão, através de metodologias colaborativas de escuta activa, valorizando os recursos existentes nem sempre visíveis, capacitando os participantes e gerando aprendizagem”.

Um dos benefícios que o autor identifica na participação cívica encontra-se na possibilidade de melhoria da relação entre eleitos e eleitores, uma relação que, frequentemente, é de desconfiança recíproca. A comunicação que se torna possível estabelecer entre uns e outros contribui para criar “um canal de diálogo, de conhecimento mútuo e de melhor compreensão da natureza complexa dos problemas, mas também do alcance e das limitações da acção colectiva, permitindo uma dessacralização do exercício do poder e um comprometimento maior dos beneficiários enquanto protagonistas, e não apenas como destinatários”. Tudo isto, de resto, como José Carlos Mota considera, “poderá levar a uma melhor aceitação de decisões que não vão totalmente ao encontro das expectativas iniciais”.

“A capacidade de ajudar a construir colectivamente, sobretudo num quadro global que tem privilegiado acções e comportamentos individualistas”, é outro dos potenciais benefícios da participação dos cidadãos. “O conhecimento produzido entre pares através do diálogo permite identificar pontos em comum e convergências, assim como perceber que há múltiplas formas de conhecimento sobre a realidade, que se complementam. Os cidadãos, os académicos e os técnicos possuem sobre o mesmo objecto diferentes tipos de conhecimento – um mais empírico ou tácito, feito da vivência quotidiana ou da experiência, outro mais codificado, validado por métodos e ferramentas analíticas”. E a participação permite “encontrar pontes entre códigos e representações diferentes”.

“O voto é uma arma do povo”; o voto em eleições e, sublinhe-se, o voto em referendos. Podendo ser de âmbito nacional ou local, os referendos também reforçam o poder de acção cívica, como José Carlos Mota assina. Todavia, têm sido escassíssimos: três a nível nacional e, segundo um estudo citado, desde 1990, três a nível local, o que, tal como nota o autor, contrasta com o que se passa, por exemplo, na Suíça, país onde, mensalmente, se realizam diversos referendos locais. Mas a participação cidadã em Portugal tem histórias que o autor apresenta, dando conta de distintos tipos de intervenção que podem servir de exemplo para outras acções.

A Participação Cívica em Portugal é um livro muito oportuno e útil para o aprofundamento da democracia, num período em que se multiplicam os que, aviltando-a, concorrem para a destruir.

A obra tem o condão de identificar os requisitos essenciais que importa preencher para que a participação exista e seja profícua na defesa do interesse colectivo. Outro mérito assaz relevante do trabalho de José Carlos Mota encontra-se na refutação de um conjunto de preconceitos sobre a participação, considerando o autor que, por exemplo, ao contrário do que tantas vezes se diz, as pessoas se envolvem quando verificam que há uma escuta verdadeira, um reconhecimento dos contributos apresentados e, claro, consequências nas políticas públicas.


 


 

[1] O livro publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos foi apresentado na segunda-feira passada, dia 10, em Braga, na Livraria Almedina – Livraria Victor, há 50 anos.

Eduardo Jorge Madureira Lopes

Eduardo Jorge Madureira Lopes

16 novembro 2025