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Fogo, Norma e Consciência: Entre a Tradição e a Responsabilidade

Com o verão chega o calor, e com ele, uma velha e trágica realidade: os incêndios florestais. Portugal, ano após ano, é fustigado por chamas que consomem não apenas a vegetação, mas também vidas, habitações, memória e esperança. A ligação entre estas catástrofes e o comportamento humano já não é novidade — descuidos, negligência, ou atos dolosos, continuam a ser as causas principais. Num contexto de seca extrema e temperaturas elevadas, qualquer faísca pode transformar-se num inferno.

Portugal acaba de enfrentar uma das mais severas crises de incêndios rurais dos últimos anos. O cenário agravou-se com uma onda de calor histórica que elevou temperaturas a níveis recorde durante junho e julho, colocando vastas áreas em situação de risco máximo, com impacto significativo no Minho, que foi particularmente afetado, sobretudo nos concelhos mais rurais.

Foi nesse cenário que o Governo decidiu proibir, entre outras medidas, o uso de fogo de artifício em todo o território continental, no período compreendido entre as 00h00 de domingo, dia 3 de agosto, e as 23h59 de quinta-feira, dia 7 de agosto. Uma medida que, sendo tecnicamente fundamentada, chocou com outro tipo de fogo: o das tradições populares. Várias localidades optaram por antecipar os espetáculos pirotécnicos, para não abdicar da festa. Cumpriram a letra da lei, mas terão cumprido o seu espírito?

Esta reação levanta questões profundas sobre a consciência social e o verdadeiro sentido da legalidade. Uma sociedade madura vai além da obediência formal: age com responsabilidade, pondera as consequências e, sobretudo, pensa no próximo. Quando uma vila decide lançar fogo de artifício às 23h45 para “não infringir a lei”, estará a agir de forma legal, mas estará a agir de forma solidária? Estará a proteger as populações vizinhas, os bombeiros exaustos, os campos secos e os animais assustados? O

A legalidade é essencial, mas é o mínimo ético. Já o grego Sócrates defendia a obediência à lei com consciência crítica. Para Aristóteles, a lei é importante, mas a justiça verdadeira não se resume ao cumprimento da norma. No livro Ética a Nicômaco, distingue entre justiça legal e justiça moral, sendo esta fazer o que é certo, mesmo quando a lei é omissa ou insuficiente. A consciência social a isso obriga. Exige empatia. Impões que, mesmo tendo o direito legal de fazer algo, pensemos se devemos realmente fazê-lo. A antecipação do fogo de artifício – de que eu gosto muito, assim como das festas populares - pode parecer uma solução inteligente e criativa, mas na prática pode revelar uma certa fragilidade moral.

Não se ignora que a antecipação dos espetáculos de fogo-de-artifício por várias autarquias e comissões de festas, foi aplaudida por muitos como um gesto de responsabilidade social. Esses muitos serão a maioria dos membros da comunidade destinatária das festividades, como se pode ouvir em algumas declarações televisivas em entrevistas com os locais. Com o mal de outros posso eu bem, faz lembrar. E, para além da alegria proporcionada aos populares, a decisão de adaptar as festividades teve outro efeito positivo: evitou confrontos legais e coimas pesadas, protegendo financeiramente as comissões organizadoras e as autarquias.

Não podemos olvidar que cada caso assume contornos próprios. No entanto, em geral, convém perguntar: será mesmo responsável manter a tradição a todo o custo, ainda que isso implique contornar a finalidade da norma? Ou estamos apenas a maquilhar uma imprudência com uma aparência de civismo?

A intenção legislativa era evidente — proteger vidas, propriedades e o património natural. Mas ao antecipar os fogos em poucos minutos, apenas para escapar à moldura legal, não se mudou o risco. Mudou-se a hora, mas não mudou o contexto. O mato continua seco, o calor continua intenso e o perigo permanece real e tanto era perigoso o fogo às 23h45m como 15 minutos depois.

Há quem diga que os portugueses só se lembram dos incêndios quando as chamas estão à porta. Há alguma verdade nisso. E enquanto não incorporarmos, de forma duradoura, um sentido de responsabilidade ambiental e social, continuaremos a repetir os mesmos erros, ano após ano.

A responsabilidade social não se mede apenas por cumprir a letra da lei, mas por assumir a sua essência. Enquanto continuarmos a encontrar formas de “driblar” o que devia ser um alerta vermelho coletivo, continuaremos a alimentar uma cultura de risco que já nos custou demasiado.

Carlos Vilas Boas

Carlos Vilas Boas

14 agosto 2025