É compreensível a ampla mobilização da atenção da opinião pública que a Inteligência Artificial (IA) está a suscitar. Os textos em jornais e revistas, os livros, as conferências e as jornadas de todo o género abundam, apresentando múltiplas perspectivas, com enquadramentos que tanto podem ser optimistas como francamente pessimistas.
A revista Visão dedicava toda a capa da edição de quinta-feira e quase duas dezenas de páginas à Inteligência Artificial e ao duelo que suscita entre os Estados Unidos da América e a China, que “pode mudar as nossas vidas”. “Se estamos a caminhar para um mundo com superinteligência, deveríamos estar conscientes do potencial de instabilidade política”, eis uma das advertências. No fim-de-semana anterior, a Conferência Nacional das Associações de Apostolado dos Leigos organizara em Braga uma iniciativa intitulada “Fia-te nos algoritmos e não vivas... Desafios humanos na era da IA”. Se, entre os que lá estiveram, houvesse distraídos, eles seriam instados a perceber que não estamos numa mera época de mudança, mas numa dessas raras e gigantescas mudanças de época da história da humanidade.
Os intervenientes na iniciativa manifestaram-se de um modo geral confiantes nas potencialidades desta “ferramenta” tecnológica, sem que, por isso, tivessem julgado dispensável adoptar uma atitude prudente. É preciso temperar “a arrogância do ‘mundo novo’” com “a sabedoria do ‘mundo velho’”, considerou Paulo Novais, da Escola de Engenharia da Universidade do Minho.
Mesmo entre os especialistas mais entusiastas há inquietações. Numa entrevista recente, Arlindo Oliveira, professor catedrático do Instituto Superior Técnico e presidente do comité de acompanhamento da Agenda Nacional de Inteligência Artificial, recordou que o físico britânico Stephen Hawking tinha identificado os perigos que põem em causa a existência da Humanidade e, além da guerra nuclear, do aquecimento global e das armas biológicas, surgia a inteligência artificial [1].
O que se ganhará com o uso da IA em certas áreas é, frequentemente, apresentado como promissor. Particularmente animadores são os benefícios que, por exemplo, oferecerá à medicina. Mas os problemas antevistos noutros campos são preocupantes, como alguns dos que Arlindo Oliveira identifica no livro A Inteligência Artificial Generativa: a destruição da privacidade, a fraude, a desinformação e a manipulação das opiniões. Os riscos relacionados com “a adopção de mecanismos discriminatórios” ou com “a transformação profunda do sistema económico”, susceptíveis de aumentar o desemprego e promover a excessiva concentração do poder económico também são considerados [2]. O capítulo sobre os riscos e desafios da Inteligência Artificial não é tranquilizador.
Observa o autor que “a manipulação de opiniões políticas, recorrendo ou não a desinformação, é outro risco significativo e imediato. A utilização de tecnologias de análise de dados, acoplada às tecnologias de inteligência artificial generativa, poderá permitir influenciar decisões sobre questões políticas e sociais, moldando a opinião pública a favor de interesses particulares sem que a influência exercida seja perceptível”. A manipulação, como acrescenta o autor, torna-se agora mais problemática porque a IA pode, a partir do que sabe sobre as características de cada pessoa, adaptar as falsidades em função da especificidade de cada perfil.
Perante a gravidade dos desafios colocados pela IA, com a crescente delegação de decisões na inteligência artificial, têm-se registado, como assinala o filósofo Daniel Innerarity, três sugestões de resposta: “a moratória, a ética e a crítica política” [3]. Dito de outro modo: “A proposta de que a tecnologia seja interrompida pelo menos por um tempo, a sua submissão a códigos éticos ou o seu exame de acordo com uma perspectiva de crítica política” (o filósofo prefere a última opção).
“A política ao longo do século XX girou em torno do debate sobre como equilibrar Estado e mercado (quanto poder deve ser conferido ao Estado e quanta liberdade deve ser deixada ao mercado)”, recorda Daniel Innerarity. Agora, adverte, a grande questão “é decidir se as nossas vidas devem ser regidas por procedimentos algorítmicos e em que medida, como articular os benefícios da robotização, automatização e digitalização com aqueles princípios de autogoverno que constituem o núcleo normativo da organização democrática das sociedades. O modo como configurarmos a governança destas tecnologias vai ser decisivo para o futuro da democracia; pode implicar a sua destruição ou o seu fortalecimento”. A tarefa é de monta.
[1] Teresa Joel – “Arlindo Oliveira – Inteligência artificial: E o futuro acontece”. Tempo Livre, Março-Abril, 2025
[2] Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025
[3] Una teoría crítica de la inteligencia artificial. Galaxia Gutenberg, 2025 (extracto pré-publicado pelo diário El País)