Voltei ao Douro, o das vinhas, o dos socalcos pelas encostas. Mais uma vez. A enésima vez. Não será certamente a última vez.
Publiquei há três/quatro anos, no Diário do Minho, um artigo alusivo à vez anterior a esta. Nele dizia, com algumas referências exemplares, que nunca tinha visto o Douro tão belo. Soube pouco depois que alguns leitores, influenciados pelo testemunho, foram ao Douro e regressaram tão fascinados como eu. Muito me alegrou então o feedback.
Pois voltei lá há dias e neste momento deixei de saber qual é o momento, esse, o do Douro mais belo. Uma certeza me ficou: no Outono, o Douro transfigura-se! Está um assombro! É um assombro! Tanto, que essa parcela, dita do Douro Vinhateiro, 25 000 hectares, cerca de um décimo da mais antiga região demarcada do mundo1, é, desde 2001, Património da Humanidade. Justamente. Jóia tão preciosa quanto esta não poderia ser só de alguém, merece ser de todos e reclama especial protecção (de recordar que a construção da barragem do Tua fez tremer a classificação da Unesco, obrigando a medidas de salvaguarda da paisagem).
O Douro vermelho, mais precisamente de vários vermelhos, do vivo de sangue ao bordeaux e ao carmesim, o Douro castanho térreo, o Douro laranja, o Douro amarelo ocre, o Douro dourado. Tudo numa tela só.
A tempestade Cláudia, que tantos estragos fez no país, poupou um pouco a região transmontana e não estragou o quadro. Assim, carregados de vinhas, sucedem-se socalcos e patamares traçados “a régua e esquadro”, que cobrem encostas e encostas, em subida até ao céu, em descida até ao rio, num cenário de beleza estonteante!
Já lá fui na Primavera, com a folhagem renovada dos rebentos das videiras pintando a tela de verde, só ao de leve. Já lá fui no Verão, com a pujança das vinhas, dum verde exuberante, mirando-se no espelho azul do rio. Já lá fui no inverno, no quase-inverno, com o tempo sem folhas e sem frutos dando o papel principal ao térreo chão – os chãos do Douro – onde tudo vai voltar a acontecer. Em todas as estações, o nosso Douro é mágico!
Contudo, desta paleta mesclada também faz parte a cor que tem o sofrimento. Sim, o sofrimento que a actual paisagem duriense custou a muita gente. Os deslumbrantes socalcos cobertos de vinhas a perder de vista foram arrancados a uma terra de pedra xistosa por mãos de homens e mulheres, em encostas inclinadas, num equilíbrio difícil e arriscado. A paisagem que vemos esconde nos alicerces muito sacrifício, muito esforço, muito trabalho árduo.
Estilhaçar a pedra, distribuir videiras por escadarias em declive, colher de sol a sol os cachos gordos, carregar as uvas vindimadas, transportar as pipas, preciosos depósitos do precioso néctar, num rio rebelde e sinuoso, foi uma tarefa hercúlea, hoje facilitada por recursos que sabemos (havia no princípio troços do rio onde os barcos rabelos tinham de ser puxados por carros de bois).
Ando há dias a reler o nosso Torga, autor a que regresso com frequência. Nem de propósito, tenho em mãos, neste momento, o romance Vindima. No romance, tudo se passa exactamente ali, nos sítios onde andei desta última vez, e a narrativa do quotidiano dos vindimadores das grandes quintas perturbou-me uma vez mais. Para não me alongar, transcrevo um fragmento do texto, admirável como tudo o que Miguel Torga nos deixou: «O Doiro risonho e alegre….ocultava por baixo do sorriso turístico um calvário de lágrimas e fome. A descrição colorida do palco de xisto escamoteava o martírio dos actores. O trato reles, as jornas miseráveis, a promiscuidade, explicados de todas as maneiras: crises nos mercados, pragas terríveis…., anos de colheitas más….Tudo isso não justificava uma escravidão de que não havia paralelo em todo o país».
Fica o testemunho do meu fascínio, sempre repetido, no DOURO DO NOSSO ENCANTAMENTO, desta vez com breve recuo ao tempo do começo, quando só havia um sonho e uma vontade que se fizeram obra _ «a mais admirável obra humana que se pode ver em Portugal», segundo o geógrafo e historiador Orlando Ribeiro.
Deixo a sugestão: Não perca, caro leitor, esta maravilha, nossa e do Mundo, e tão perto de nós. Uma tarde bem aproveitada permite admirar amostra razoável; um dia desde manhã dá para ver muito Douro, subir a vários miradouros e ficar um tempinho em cada um, contemplando este que é, seguramente, um dos mais belos recantos de Portugal.
Nota: A autora não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
1 Demarcação decretada pelo Marquês de Pombal em 1756.