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Por Entre Linhas e Ideias

E se fosses tu? Hoje é um daqueles dias em que precisamos de olhar de frente para aquilo que nos custa a encarar. Vamos falar de quem vive no limite, daqueles que acordam sem o mínimo garantido e adormecem a tentar sobreviver ao dia seguinte. A pobreza absoluta não é viver com pouco, é tentar sobreviver sem o mínimo que permite ser humano. E para perceber o alcance desta ideia, vale a pena recordar como até os mitos antigos tentaram descrevê-la.

Quero contar aos nossos leitores como a pobreza é representada por Penúria no mito que Platão partilha no Banquete. Penia simboliza a falta e Poros simboliza o engenho, e é da união dos dois que nasce o amor. Mas há momentos em que Penia fica sozinha, quando já não há engenho que a ampare. A pobreza absoluta é essa solidão extrema, quando a necessidade toma conta de tudo e já quase não há espaço para continuar a viver.

O cinema permite-nos ver com clareza a dureza da pobreza absoluta. Sentimos isso no filme À Procura da Felicidade, realizado por Gabriele Muccino e inspirado na história real de Chris Gardner, onde acompanhamos a luta de um pai que tenta garantir ao filho uma vida digna enquanto ambos enfrentam a pobreza extrema. Há uma cena inesquecível em que, não tendo onde dormir, o pai fecha a porta de uma casa de banho pública numa estação de metro para proteger o filho do frio da noite, encosta o ombro para impedir que alguém entre e segura o menino que adormece no seu colo. É assim que a pobreza extrema reduz a dignidade ao gesto mínimo de sobreviver mais um dia.

A filosofia ajuda-nos a perceber porque é que isto acontece. Thomas Pogge, filósofo contemporâneo formado em Harvard e uma das vozes mais influentes sobre justiça global, diz que muita da miséria no mundo não aparece do nada, mas que resulta de estruturas globais que beneficiam uns poucos e deixam milhões para trás. Martha Nussbaum, também filósofa, cofundadora da teoria das capacidades, lembra-nos que a dignidade só existe quando cada pessoa pode exercer as suas capacidades básicas. Quando isso falha, é a justiça que fica comprometida.

Sobre este problema é necessário fazermos uma reflexão ética, e para isso recorro à tese de mestrado da professora Diana Maia sobre a proposta de Peter Singer. Este filósofo lembra-nos que “se podemos impedir algo mau de acontecer, sem sacrificar nada de importância comparável, então devemos fazê-lo”. A partir desta ideia percebemos que, perante sofrimento evitável, temos a obrigação moral de agir sempre que isso não nos exige perder algo igualmente importante. Por isso, a responsabilidade nunca é apenas institucional, é também individual.

Olhemos para a história, e não precisamos de ir muito longe para compreender como a pobreza extrema nasce quase sempre de falhas humanas e políticas, não apenas da falta de recursos. Vou dar dois exemplos entre outros tantos: a Irlanda do século XIX viveu a Grande Fome, uma tragédia que não resultou apenas da praga da batata, mas sobretudo de decisões políticas que impediram ajuda eficaz e mantiveram exportações de alimentos enquanto a população morria. Mais de um milhão de pessoas perdeu a vida e outro milhão foi forçado a partir. A fome revelou como a indiferença institucional pode transformar uma crise agrícola numa catástrofe humana. No Ruanda, depois do genocídio de mil novecentos e noventa e quatro, milhares de sobreviventes ficaram sem casa, sem apoio e sem meios de subsistência. A violência destruiu famílias, aldeias e toda a estrutura de vida comunitária. As pessoas caminhavam quilómetros com fome, mostrando ao mundo que a pobreza extrema nasce do colapso total do tecido social e do abandono internacional.

E talvez devamos olhar para aqueles que vivem esquecidos nas ruas da nossa cidade. As pessoas em situação de sem-abrigo são, muitas vezes, o rosto mais visível da vulnerabilidade pois dormem onde podem, carregam a solidão e tornam-se quase invisíveis aos olhos de quem passa apressado. Recordo aqui o caso famoso de Sebastião Alba, poeta reconhecido que, apesar de ter casa, escolheu as ruas como último território de liberdade e desamparo. Encontrei-o algumas vezes enquanto vagueava pela zona da Senhora a Branca, em Braga, e a sua presença dizia mais sobre a fragilidade humana do que qualquer palavra. A história dele lembra-nos que a pobreza e a vulnerabilidade não têm um único rosto, mas podem tocar até aqueles que, um dia, tiveram tudo menos a força para continuar.

Estes exemplos mostram de forma clara que a pobreza tem rosto e tem história. Surge quando as estruturas que deveriam proteger os mais vulneráveis deixam de funcionar.

Convidamos os nossos leitores a refletir esta semana sobre a força de um gesto simples na vida de alguém em vulnerabilidade.
Que gesto teu pode fazer a diferença?

Eugénio Oliveira

Eugénio Oliveira

26 novembro 2025