Estamos no Cais da Rocha, em Lisboa. Embarcamos no navio Uíge em 17 de Abril de 1968 para Angola [“minha”, no título, é sinónimo de “nossa”, do B Caç. (Batalhão de Caçadores) 2844]. Estamos já dentro da “caravela”. Nas nossas costas está o Cristo Rei, com os Seus braços abertos; está virado para o barco. A despedir-se de nós?! Mas nós viramos-Lhe as costas para nos despedirmos dos familiares e amigos.
O barco começa a afastar-se do cais. Passamos debaixo da ponte. Por cima dela, os carros vão de Lisboa para a outra margem, da outra margem para Lisboa, indiferentes ao barco que passa por baixo naquele momento. “Ouvimos” os seus ocupantes a comentar: “Olha, lá vai mais um barco debaixo da ponte. É mais um contingente de tropas que vai para África”.
O primeiro dia de viagem chega ao fim. É hora de recolher à cama. As imagens da despedida continuam a ocupar a minha cabeça, deito-me e… tenho a sensação que o Cristo Rei de pedra ganha movimento e começa a falar comigo: «Acompanho a vossa viagem. A minha mente divina é infinita. Compreende que vocês Me tinham virado as costas, no cais, para se despedirem dos vossos familiares e amigos. E acrescento que já pedi ao Pai para perdoar a Salazar, que o ditador não sabe o que faz. O homem de Santa Comba (não concorda com os avisos que lhe Dão). Ele continua cego (não vê a nova ordem mundial), surdo (não ouve todas as vozes que lhe chegam aos ouvidos) e mudo (não, não mudo nada!!).
Passados doze dias e outras tantas noites, somos chegados ao nosso destino, Angola. Terra africana (catorze vezes maior que o “Puto”) onde a mão do velho governante nunca pôs o pé. Nem lá, nem em Moçambique (cuja área é sete vezes a de Portugal Continental), nem mesmo na Guiné. O seu mundo era o Palácio de São Bento em Lisboa, mais a sua D. Maria.
Será de explicar o sentido de “Puto”. Etimologicamente significa “pequeno”. Tal é a área continental do país (e, por simpatia, aplicava-se à língua portuguesa).
Por aquela terra deambulámos durante mais de vinte e seis meses. O mesmo navio “Uíge” nos trouxe de regresso a casa. Embarcámos no cais de Luanda em 4 de Julho de 1970, tendo chegado a Lisboa a 15 do mesmo mês. [Durante a viagem soubemos que a mesma seria retardada de um dia, para a chegada não coincidir com a partida, a 14, também por mar, do Presidente da República Américo Thomaz, que ia em visita a Cabo Verde e São Tomé. Ainda nos cruzámos nesse dia em alto-mar].
Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, que bem soube ouvir a bordo, correndo o convés de um lado para o outro, nos noticiários da Emissora Nacional: «Chega amanhã a Lisboa um navio com um contingente de tropas que cumpriram a sua comissão de serviço em África»; isto perante a impossibilidade de responder aos insistentes e ansiosos telegramas da família recebidos a bordo.
Estava este “contingente de tropas” a gozar os seus trinta dias de licença antes da passagem à “Disponibilidade”, quando Salazar, António de Oliveira, faleceu, a 27 de Julho. Morreu na ignorância que havia sido substituído em 27 de Setembro de 1968 no cargo de chefiar o governo.