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Não retenção de alunos: a semântica da demagogia

O programa do Governo prevê a criação de um plano de não retenção no ensino básico, através do trabalho “de forma intensiva e indiferenciada, com os alunos que revelem mais dificuldades”.

Na base desta medida estão, ao que se sabe, dados do Ministério da Educação segundo os quais, anualmente, o número de reprovações naquele grau de ensino é de cerca de 50 mil alunos. Por isso, tendo em conta que cada chumbo custa aos cofres do Estado cinco mil euros por aluno, o fim das reprovações que aquela medida visa obter poderá permitir uma poupança de 250 milhões de euros por ano, o que equivaleria, numa legislatura, a mil milhões de euros.

Apesar de negar que aquela proposta programática possa camuflar a vontade de caminhar para uma solução de abolição administrativa das reprovações, o governo não esconde que o objectivo é alcançar uma “progressiva redução das retenções e eliminar administrativamente a figura da retenção”, assente em medidas pedagógicas.

Mas, a verdade é que só os ingénuos podem deixar-se enganar. Quem, como os professores, acompanha a realidade diária das escolas sabe que não irá ser assim e sente uma profunda indignação por mais um acto governamental de pura demagogia.

Primeiro porque, quando não há recursos para contratar mais funcionários ou para reparar edifícios em mau estado – o que tem até levado ao encerramento de algumas escolas –, quando está generalizado o sobretrabalho dos professores e quando escasseiam verbas para as mais elementares despesas correntes (material didáctico, aquecimento de salas, etc.), ninguém acredita que possam sobejar recursos para combater o insucesso.

Depois porque muitos e muitos professores já se sentem pressionados a aprovar alunos que, em consciência, o não merecem. E também porque, sabendo ter a passagem praticamente assegurada, a maioria dos alunos tenderá a não se interessar pelo acompanhamento suplementar que lhes possa ser oferecido, cuja utilidade, aliás, será muito duvidosa, tendo em conta que, em inúmeros os casos, os alunos nem sequer manifestam vontade de ser apoiados.

E, last but not least, porque foi com este governo que os exames do 4º e 6º anos foram abolidos, ficando apenas os do nono ano de escolaridade.

Por tudo isso, acredito que a anunciada medida foi apresentada com reserva mental: a verdadeira intenção é mesmo a de preparar o campo para eliminar os chumbos até ao 9º ano.

As medidas de acompanhamento especial não irão, certamente, ser postas em prática ou, a sê-lo, não serão generalizadas ou não terão utilidade.

É certo que as desigualdades sociais são causa de insucesso escolar, mas não é seguramente com passagens administrativas que se resolve o problema. Bem ao contrário, por este modo, a inépcia e a falta de preparação dos mais carenciados tenderão a aumentar, enquanto o prestígio da escola pública tenderá a decrescer.

Quer dizer, em vez de factor de inclusão, a escola pública discriminará negativamente, não preparando convenientemente os mais pobres para os exames e avaliações a que, inevitavelmente terão de submeter-se se quiserem ter acesso a níveis superiores de ensino. Enquanto os mais ricos, podendo aceder a colégios e a explicações particulares terão melhores hipóteses e oportunidades de sucesso.

Eis como, suprimindo exames e acabando com reprovações, o Estado abdica do papel que lhe cabe na correcção das desigualdades sociais, ao arrepio das intenções que alardeia.

Confrontado, no último debate quinzenal no parlamento, pelo PSD e pelo CDS, com a mencionada questão dos chumbos até ao 9º ano – “Os que não sabem vão reprovar ou até aos 14 anos ninguém reprova?” –, foi patente o incómodo do primeiro-ministro, que explicou que “aquilo que se prevê é que dentro do ciclo não haja retenção, mas sim continuação do estudo”, citando recomendações que “indicam que a retenção não favorece a aprendizagem mas a multiplicação da retenção”.

E tanto bastou para se perceber que António Costa está do lado do facilitismo e da poupança dos muitos milhões que a não retenção dos alunos trará ao erário público.

Nesta, como noutras importantes áreas (a da saúde, por exemplo), a demagogia e a ineptocracia do governo e da esquerda que o cauciona são a melhor garantia da afirmação do sector privado e a prova da sua necessidade.


Autor: António Brochado Pedras
DM

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22 novembro 2019