A Igreja celebrou ontem a Memória Litúrgica de S. Bruno, fundador da Ordem Cartusiana, uma das mais austeras e contemplativas ordens religiosas da Igreja Católica que, tendo atravessado os séculos sem reformas, perdura até hoje com a radicalidade das origens.
Bruno de Hartenfaust nasceu em Colónia (Alemanha), pelo ano 10301, e aí estudou, na escola de S. Cuniberto. Porém, aos 14 anos, mudou-se para Reims (França), a fim de estudar humanidades. Depois, estudou Filosofia em Tours (França) e voltou a Reims para cursar Teologia. Regressado a Colónia, foi ordenado sacerdote e, mais tarde, nomeado cónego da Catedral.
Em 1057, o arcebispo de Reims chamou-o para orientar todos os centros de ensino da diocese. Aí se destacou, em virtude da sua inteligência, vida piedosa e sabedoria teológica, de tal forma que veio a ser professor e reitor da escola catedralícia, à época uma das mais prestigiadas da Europa.
Quando, em 1080, o Papa Gregório VII destituiu o arcebispo de Reims, Bruno recebeu o convite para o arcebispado, mas recusou-o. Quatro anos depois, abandonou a vida académica, em busca de um caminho de oração e contemplação. Ao fim de um curto estágio num mosteiro beneditino, retirou-se para o vale de Chartreuse, nos Alpes franceses, e aí, com seis companheiros e com o apoio de Hugo, bispo de Grenoble e seu antigo discípulo, fundou o mosteiro da Grande Chartreuse, que está na origem da Ordem Cartusiana e é, ainda hoje, a sua casa mãe2. Conjugando a vida eremítica (solitária) com a comunitária3, a tónica deste registo monástico está no silêncio, na oração e na simplicidade radical. A propósito, são sugestivas algumas das afirmações do seu fundador: “aqui vivemos na luz, mesmo que o mundo esteja em trevas”; “é grande coisa estar longe do tumulto do mundo, das suas ansiedades e da corrupção”; “o silêncio do claustro fala mais alto que as vozes do mundo”. A sua vida inspirou muitos monges e leigos a procurar a oração contemplativa e a renúncia ao mundo material.
Pelo ano 1090, Bruno foi chamado a Roma pelo Papa Urbano II, que tinha sido seu aluno e muito valorizava a sua sabedoria e espiritualidade. O Papa buscava nele ajuda para a reforma eclesial que pretendia: restauro da disciplina clerical, combate à simonia (compra de cargos eclesiásticos) e reforço do celibato. Porém, Bruno não permaneceu muito tempo na Cúria papal, pois preferia a vida eremítica. Apesar de já ter fundado a cartuxa de Santa Maria dos Anjos, nas termas de Caracala (Roma), com a autorização do Papa, retirou-se para uma região deserta, na Calábria, e aí fundou o mosteiro de Santa Maria da Torre, uma nova comunidade eremítica que dava continuidade à que havia fundado em França e em Roma.
O monge Bruno não abundou na escrita, pois dele apenas conhecemos as cartas que enviou a Raul4 e as que endereçou aos irmãos da Grande Cartuxa de Grenoble5. São cartas espirituais e afetuosas que tratam da vida monástica e da contemplação, encorajando os monges a perseverar no caminho espiritual. Afirma aí que “só os que experimentaram podem compreender as íntimas alegrias que há na solidão do deserto. Aqui é que se pode penetrar no interior da alma, onde é possível viver com liberdade, cada um diante de si mesmo, desenvolver no coração os germes mais pequenos da virtude, recolher os frutos que asseguram os gozos do Paraíso”.
Das suas frases mais importantes, destacamos apenas três: “Só Deus basta. Fora d’Ele, tudo é vaidade”, “A solidão é amiga da verdade” e “Nada é mais belo do que viver em amizade com Deus”. Porém, a mais famosa, que serve de divisa à Ordem Cartusiana e que traduz o essencial do seu pensamento, é Stat crux dum volvitur orbis (“O mundo gira, mas a cruz permanece firme”).
Bruno faleceu no dia 6 de outubro de 1101 e foi sepultado no cemitério de Nossa Senhora da Torre, depois de ter proferido a seguinte profissão de fé na Eucaristia: “Eu creio nos Santos Sacramentos da Igreja Católica, em particular, creio que o pão e o vinho consagrados, na Santa Missa, são o Corpo e Sangue verdadeiros de Jesus Cristo”.
Em 1515, o seu corpo foi encontrado incorrupto. Um pouco antes, a 19 de julho de 1514, o Papa Leão X tinha concedido que se rezasse um ofício em sua honra, o que equivaleu à sua beatificação. Mais de um século depois, em 17 de fevereiro de 1623, o Papa Gregório XV canonizou-o.
Num mundo agitado e em tempos conturbados, o exemplo de S. Bruno permanece vivo. De facto, é no silêncio e na contemplação que não só nos encontramos com Deus, como também connosco próprios, refazendo-nos interiormente. Estou em crer que está aqui o remédio para muitos dos nossos males.
1As referências ao seu nascimento oscilam entre 1030, 1032 e 1035.
2Espalhados pelo mundo, os Cartuxos tiveram uma única casa em Portugal, em Évora. Em 31 de outubro de 2019, por falta de vocações, a Cartuxa de Évora (mosteiro de Santa Maria Scala Coeli) fechou e os seus membros mudaram-se para Espanha.
3Os monges cartuxos vivem em celas individuais, mas reúnem-se para algumas orações e refeições semanais.
4 Raul era um amigo íntimo e também discípulo de S. Bruno, que se tornou monge cartuxo.
5Nessas cartas, oferece conselhos espirituais e expressa o seu amor e saudade pelos irmãos, sobretudo depois de ter sido chamado a Roma pelo Papa Urbano II.