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O sofrimento que não queremos (ou não sabemos) ver

Enquanto enfermeira especialista em saúde mental, tenho vindo a ficar apreensiva – e preocupada – com o crescente número de familiares e amigos que chegam até mim com um pedido de ajuda. Os problemas de depressão e de adições estão à cabeça, mas há muitas outras situações silenciosas, escondidas atrás de sorrisos apressados e rotinas demasiado pesadas. Ansiedade disfarçada de produtividade, solidão mascarada de independência, relações desgastadas pela exaustão emocional — tudo isto se entranha nas conversas do dia-a-dia sem que muitos se apercebam da sua gravidade.

Hoje, serve esta partilha para que não pensem que só acontece aos outros — está mesmo ali ao lado, dentro das casas que conhecemos, na mesa de jantar da família que parece perfeita, nas vidas que imaginávamos estáveis, nos rostos que passam por nós todos os dias, no colega que nunca falta um dia ao trabalho, no amigo que diz sempre “está tudo bem” com um sorriso demasiado ensaiado. 

Vivemos num mundo que se move depressa demais. Exige-nos produtividade constante, disponibilidade permanente e uma alegria quase obrigatória. A vulnerabilidade tornou-se um luxo que poucos admitem ter. E é precisamente nesse desencontro entre o que sentimos e o que mostramos que muitos dos nossos problemas começam. As pessoas revelam-se cansadas, com a sensação de que falharam. Falharam porque não conseguem dormir, porque discutem sem motivo, porque bebem demais para tentar esquecer, porque deixaram de encontrar prazer naquilo que antes as fazia sentir vivas.

O alerta surge – e consegue marcar-nos de forma acutilante – quando percebemos que muitos destes sofrimentos poderiam ser evitados se houvesse espaço para falar, para pedir ajuda sem medo, para reconhecer que não somos máquinas. Mas continuamos a empurrar a dor para baixo do tapete, como se ignorá-la fosse solução. Não é. A saúde mental não se resolve com frases motivacionais nem com a promessa de que “vai passar” ou “vai ficar tudo bem”. Requer tempo, cuidado, conhecimento e, sobretudo, humanidade.

No entanto, há ainda um estigma persistente que impede muitos de procurar apoio especializado. É como se admitir fragilidade fosse perder dignidade. Pelo contrário: coragem é assumir que precisamos de ajuda e dar o primeiro passo. E esse passo pode mudar tudo – já o vi acontecer inúmeras vezes.

Se há algo que tenho vindo a aprender ao longo da minha experiência profissional e pessoal, é que todos nós, em algum momento, podemos tropeçar. E não há vergonha nisso. O que realmente importa é perceber que não estamos sozinhos. Precisamos de criar comunidades mais solidárias, serviços mais acessíveis e discursos mais honestos. Precisamos de cuidar uns dos outros antes que o silêncio se transforme em sofrimento profundo.

Os problemas de saúde mental não são um tema distante. São o nosso presente e afetam pessoas próximas de nós. E, se começarmos a olhar verdadeiramente uns para os outros, talvez possamos construir um mundo onde pedir ajuda deixe de ser um ato de desespero e passe a ser simplesmente um gesto de cuidado. 

Estamos em dezembro, mês em que inevitavelmente fazemos balanços e apontamos resoluções para o novo ano. Não sendo grande fã de promessas de Ano Novo, ainda assim deixo um desafio: que em 2026 constitua um propósito pessoal e cívico continuar a trazer a saúde mental para o centro da conversa pública. Se queremos pessoas mais saudáveis, temos de começar por reconhecer esta realidade sem rodeios, com responsabilidade e com a urgência que o tema exige.

Cristina Silva

Cristina Silva

17 dezembro 2025