twitter

Por Entre Linhas e Ideias

Às vezes tenho a sensação de que o mundo não perdeu apenas a paz, perdeu também a capacidade de se comover. As imagens de guerra entram-nos em casa todos os dias, mostram crianças cobertas de pó, cidades destruídas, colunas de fumo que marcam o horizonte com a presença da destruição, e passam diante dos nossos olhos com a mesma leveza com que passamos o olhar pelo ecrã sem nos deter. Já não nos perturbam nem nos comovem. A violência deixou de ser exceção e tornou-se rotina, e pergunto-me como conseguimos viver assim, como conseguimos chamar paz a este sossego cúmplice da dor.

O que resta da paz quando o mundo se habitua à indiferença? 

Vivemos num tempo em que a apatia se disfarça de serenidade. A palavra vem do grego apathos, que significava ausência de perturbação, um ideal de equilíbrio interior. Mas o que no passado era virtude tornou-se vício, e hoje confundimos serenidade com indiferença e paz com distância. Dou por mim, como tantos de vós, a assistir ao que acontece à nossa volta com uma calma que não é virtude, mas anestesia moral. Talvez seja por isso que o mundo me parece mais frio e distante, como se tivéssemos perdido aquele impulso interior que nos faz reagir, proteger e, acima de tudo, sentir o sofrimento dos outros.

Muitas vezes me vem à memória o tempo em que aprendi o contrário, quando a indiferença era impensável e o cuidado era um dever. Recordo o tempo do meu serviço militar, como comandante de pelotão em Santa Margarida. Foi aí que aprendi o peso da responsabilidade e percebi que liderar não é mandar, mas sim proteger. As minhas decisões implicavam a obrigatoriedade do dever como uma forma de cuidar e de compromisso com os outros. Hoje, quando olho para o mundo, penso que essa ideia se perdeu bastante. O dever deixou de ser um imperativo e o compromisso parece ter sido substituído por um conforto indiferente que nos protege da emoção, mas também nos afasta da humanidade.

Mais uma vez recorro à filosofia pois ajuda-nos a compreender o que vejo e o que sinto, porque pensar é também uma forma de alertar. Hannah Arendt escreveu: “O mal torna-se banal quando deixamos de pensar e de julgar moralmente”, e temo que seja isso que hoje acontece, ou seja, o mal cresce não na violência dos que atacam, mas no silêncio dos que apenas observam. Kant, por seu lado, ensinou que o ser humano deve ser sempre tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio, e, no entanto, cada guerra mostra o contrário. Penso nisso cada vez que vejo vidas transformadas em números, usadas como instrumentos de poder, descartadas em nome de interesses estratégicos.

Interrogo-me muitas vezes se pode haver guerras justas. Talvez possa, quando a violência é o último recurso contra a tirania ou a opressão. No entanto, a fronteira entre o justo e o necessário é sempre perigosa, pois a guerra, mesmo quando legítima, contém em si o mal que procura vencer e começa em nome da defesa para acabar na destruição. Por isso aprendi a desconfiar de todas as guerras, mesmo das que se dizem inevitáveis, porque nelas a ética raramente sobrevive ao primeiro disparo.

Se quisermos compreender de forma mais simples o que acabo de dizer, podemos olhar para o filme O Pianista realizado por Roman Polanski e deixar-nos deter por ele, onde a música resiste entre ruínas e o silêncio dos que viram e nada fizeram soa tão alto como as bombas. Esse filme mostra-nos, com uma força que a razão por si só não alcança, o que acontece quando o mal cresce no espaço deixado pela indiferença. Esse mesmo silêncio repete-se hoje, nas ruas, nas redes sociais e nas consciências que aprenderam a desviar o olhar, num cansaço que já não é físico, mas mais de ordem ética, e que vai corroendo lentamente o que resta da nossa humanidade.

Quando tudo parece cansado e a indiferença se confunde com paz, lembro-me das palavras de Albert Camus: “A paz é a única batalha que vale a pena travar.” Talvez seja nela que ainda possamos reencontrar o sentido perdido e a força de resistir à indiferença. É por esta razão que penso na minha mãe, que hoje faria 95 anos e partiu há cinco, certo de que os valores que me deixou, como amar, proteger e comover-se com o outro, continuam a ser o verdadeiro caminho da paz e o alento que impede o mundo de se perder.

Concluo sem querer dar por encerrado o pensamento, deixando a pergunta que nos desafia ao diálogo nos próximos dias:

Que mundo estamos a construir: o do conforto ou o do compromisso?

Eugénio Oliveira

Eugénio Oliveira

8 outubro 2025