“O futuro da democracia americana pode depender de os cristãos olharem para si próprios como guerreiros ou servidores”. Sobre esta incerteza, reflectiu o jornalista Michael Luo num texto publicado no domingo passado na revista The New Yorker [1].
Afirma Michael Luo que a forte vontade de cristãos participarem numa guerra contra aqueles que podem ser considerados como sendo os infiéis do século XXI se manifestou com recrudescida intensidade após o assassinato do activista Charlie Kirk, um influente apoiante de Donald Trump. O jornalista refere a ferocidade do presidente dos Estados Unidos da América que, no funeral do seu apoiante, o evocou como um homem que “queria o melhor” para os seus oponentes. Nisso divergiam, disse Trump. “Eu odeio os meus adversários”, declarou ele, acrescentando: “Eu não quero o melhor para eles”. Michael Luo inclui o vice-chefe de gabinete da Casa Branca, Stephen Miller, entre os mais aguerridos. No funeral de Kirk, ele apelou à “derrota das forças das trevas e do mal”. Apontando aos inimigos, garantiu que “eles não percebem o exército que criaram”.
No pólo oposto a este ódio, estão os cristãos que têm outra visão, antagónica, da missão do cristianismo. Ela deve ser, como disse um dos inquiridos pelo jornalista, “um verdadeiro desejo de servir com amor”.
Neste confronto entre os cristãos que se vêem como guerreiros e os que se olham como servidores, os belicosos parecem estar, neste momento, em vantagem. É que, como avisadamente se regista no texto, a afirmação da gentileza torna-se particularmente árdua num momento em que a economia da atenção recompensa a indignação.
Vemo-lo, aliás, todos os dias. A raiva e o ressentimento são as emoções mais facilmente exploradas para suscitar visualizações em redes sociais. Mesmo quando editorialmente garantem preferir a convivência, vários media convencionais dão primazia a discursos de ódio. Simulando combatê-los, difundem-nos porque percebem que são mais rentáveis por lhes proporcionarem mais audiências. Num mundo tão polarizado, a amabilidade pode afigurar-se uma ineficaz alternativa ao ódio – embora o ódio não seja alternativa a coisa alguma.
Entre os que desbravaram caminhos pacíficos, Michael Luo refere Dallas Willard, um influente pensador evangélico e professor de Filosofia na Universidade do Sul da Califórnia, que morreu em 2013. Dallas Willard “acreditava que o ministério apologético na Igreja – a defesa da fé cristã contra os seus críticos – tinha-se focado excessivamente em ‘debates e argumentos intelectuais’ e advertiu os crentes contra a adopção de ‘um espírito conflituoso e arrogante’ perante os antagonistas”. A apologética cristã, preconizou, deve ser caracterizada pela gentileza, porque “o que estamos a procurar defender ou explicar é o próprio Jesus, que é um pastor gentil e amoroso. Se não formos gentis na forma como apresentamos as boas novas, como é que as pessoas encontrarão o Messias gentil e amoroso que queremos evocar?”
Na esteira de Dallas Willard, Michael Luo apresenta Michael Wear, que tem trabalhado na intersecção da fé com a política e que, no ano passado, publicou O Espírito da nossa Política (The Spirit of our Politics), obra em que preconiza a aplicação da ética de gentileza de Dallas Willard à política. Evangélico, Michael Wear descreve-se como “céptico em relação a uma influência cristã egoísta, tribalista e antagonística na política que se autodenomina cristã, mas não parece, não soa e não age como Cristo”.
Os Estados Unidos da América tornaram-se “cada vez mais doentes de raiva e ressentimento” de uns para com os outros, nota Michael Wear, lamentando que esses sentimentos sejam muitas vezes alimentados e justificados em nome de Deus.
As propostas de Michael Wear, segundo o jornalista da New Yorker, “são pouco vistosas” e não oferecem “soluções rápidas”. Mas Michael Wear é optimista. Há um problema de falta de imaginação num porvir melhor, mas se as pessoas vislumbrarem um horizonte “diferente e melhor, elas quererão persegui-lo”. O jornalista Michael Luo termina o texto considerando que “o futuro da democracia americana pode depender disso”.
O antagonismo entre os que, crentes ou descrentes, fomentam a hostilidade e os que estimulam a urbanidade não é um problema específico dos Estados Unidos da América. Onde a brutalidade se dissemina a degradação da qualidade da vida em comum é inevitável, como é evidente.
Na segunda-feira, o Corriere della Sera dava voz a uma chamada de atenção de Vincenzo Corrado, director do Gabinete de Comunicação Social da Conferência Episcopal Italiana [2]. Dizia ele, a propósito de um apelo dos bispos italianos pelo fim da guerra em Gaza, “que a questão da educação para a paz se torna decisiva para o futuro próximo”. Tem razão: “Precisamos de formar pessoas que saibam romper os muros da polarização, que traduzam em realidade o mandamento cristão do amor mútuo. Pessoas que reconheçam a paz como uma obra quotidiana, frágil, muitas vezes silenciosa, mas sempre autêntica”.
[1] “The Politics of Faith After Charlie Kirk”
[2] “«Pace in Terra Santa!»: il grido della Chiesa italiana con 145 progetti in 30 anni”