Uma manifestação de apoio à hierarquia católica, também convocada para reclamar a devolução da Rádio Renascença ao Episcopado, colocou Braga, no dia 10 de Agosto de 1975 – assinalam-se hoje 50 anos – no centro da actualidade política nacional e internacional. “Mais de cem mil pessoas manifestaram-se ontem em favor do Episcopado Português”, registaria, no dia seguinte, a manchete do Diário do Minho, então dirigido por Domingos da Silva Araújo. A primeira página do jornal referia uma afirmação do Arcebispo Primaz, D. Francisco Maria da Silva, que, na ocasião, tinha dito: “Quem nos governa há-de tomar consciência do que o povo quer e do que o povo não quer”. A uma participante que interveio “em nome de milhares de mulheres cristãs da Arquidiocese de Braga” era atribuída, noutro título, uma declaração mais contundente: “É repugnante haver quem pretenda injuriar a Igreja através da Hierarquia”. A primeira página servia ainda para divulgar um comunicado da Comissão Organizadora da Manifestação de apoio ao Episcopado em Braga. A única fotografia da capa apresenta o prelado enquanto discursava.
O que se sabe hoje sobre o que se passou nesse dia e nos seguintes é muito diferente daquilo que durante bastantes anos foi a verdade dos factos. Tal sucede, em grande medida, graças às revelações de José Sanches Osório, membro do Movimento das Forças Armadas e da sua primeira Comissão Coordenadora e, a seguir, descontente com o rumo da revolução, participante, no exílio, na fundação do Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), um agrupamento que congregava pessoas da extrema-direita civil e militar e que, com o Exército de Libertação Português (ELP), colocou o Norte do País “a ferro e fogo”, atacando à bomba, a tiro ou incendiando as sedes do PCP e de outros partidos de esquerda e de sindicatos ao longo do Verão Quente de 1975. O modo como as coisas realmente se passaram foi recordado, neste início de Agosto, numa conversa do oficial militar com Nuno Ribeiro, jornalista do Público [1].
José Sanches Osório, que foi deputado do CDS entre 1979 e 1983, já tinha, aliás, contado a verdadeira história numa entrevista concedida ao jornalista João Paulo Guerra em Abril de 1999: “Eu e determinadas pessoas fizemos uma denúncia falsa ao COPCON, dizendo que o arcebispo de Braga, que ia participar num congresso eucarístico em S. Paulo, levava divisas de contrabando. De maneira que o arcebispo foi retido e revistado pelo COPCON no aeroporto da Portela. A denúncia falsa foi nossa, para lhe provocar a reacção que ele veio a ter, que foi convocar a manifestação de Braga. Depois explicámos-lhe o assunto e pedimos-lhe desculpa. E o arcebispo de Braga absolveu-nos.”
Na conversa publicada pelo Diário Económico [2] José Sanches Osório revelou a autoria da ideia: “Foi, foi de facto do engenheiro Jorge Jardim”, que “tinha contactos frequentes com o major Otelo Saraiva de Carvalho”. Agora, ao Público, acrescentou um nome: “A denúncia foi numa carta do engenheiro Jorge Jardim e de Valdemar Paradela de Abreu”.
A artimanha funcionou. Ou, dito de outro modo, o rastilho foi aceso. O MDLP conseguiu que o Arcebispo de Braga fosse humilhado e que se criasse a ideia de que a responsabilidade tinha sido dos comunistas e dos seus aliados. D. Francisco Maria da Silva ter sido retido e revistado, segundo José Sanches Osório, terá contribuído para quebrar a resistência que o prelado tinha manifestado em apoiar a actividade do MDLP, tarefa que delegou no cónego Eduardo Melo Peixoto. José Sanches Osório recorda a conversa com o Arcebispo de Braga: “Ele disse-nos que não nos podia ajudar, que era um problema que o transcendia, mas que nos ia apresentar alguém, era o cónego Melo.” A conclusão é óbvia: “A denúncia falsa foi o detonador para pôr o arcebispo a colaborar”.
As várias entrevistas de José Sanches Osório têm revelado diversos detalhes sobre como começou a acção bracarense contra o PCP: “O funcionamento da organização da manifestação [de Braga] foi pôr uma cidadã a dar um tiro com uma pistolinha que tinha na mala e, depois, vários outros espalhados tacticamente entre a multidão de manifestantes, que gritavam: ‘Olha o PC, olha o PC.’”. Têm, todavia, sido omissas relativamente a um pequeno pormenor: quando e como é que ele, Jorge Jardim e Valdemar Paradela de Abreu, estando no exílio, souberam que o Arcebispo de Braga ia ao Brasil.
A passagem de D. Francisco Maria da Silva pelos serviços aduaneiros do Aeroporto de Lisboa no dia 11 de Junho de 1975 foi controversa. Para o Arcebispo, foi um imenso vexame. O próprio o atestou numa “crónica” publicada nas páginas do Diário do Minho [3]. A descrição é feita “com indignação e alguma tristeza” e relata o momento em que o prelado, “acusado de ser portador de divisas”, é instado a tirar o casaco, os sapatos e a baixar as calças. Nada tendo sido encontrado, a situação é rematada com um pedido de desculpas. Os verdadeiros culpados pela humilhação, José Sanches Osório, Jorge Jardim e Valdemar Paradela de Abreu, também pediriam desculpas e, neste caso, sabemos que foram aceites, como o oficial militar atestou, ao tornar público que o prelado bracarense os absolvera.
As repercussões internacionais da manifestação bracarense foram muitas e uma delas ficou registada no Diário de Lisboa. “O Arcebispo de Paris critica o de Braga”, dizia o título de uma notícia de 16 de Agosto de 1975. O Cardeal François Marty, então presidente da Conferência Episcopal Francesa, afirmara, na catedral de Notre-Dame, a propósito de Portugal, que “a concórdia vale mais do que a violência e a justiça vale mais do que a força”.
Cinco décadas depois, não se pode dizer que o propósito se tenha tornado irrelevante.
[1] Nuno Ribeiro – “Verão Quente de 1975: um país a ferro e fogo”. Público, 3 de Agosto de 2025
[2] João Paulo Guerra – “O arcebispo de Braga absolveu-nos”, entrevista a José Sanches Osório, major do MFA e ex-dirigente do MDLP. Diário Económico, 19 de Abril de 1999
[3] [D. Francisco Maria da Silva] – “Romagem ao Brasil”. Diário do Minho, 31 de Julho de 1975
[4] “O Minho à procura do tempo perdido”. Diário de Lisboa, 14 de Agosto de 1975
NOTA: Uma versão mais extensa deste texto será publicada no 7 Margens.