Comecei a ler há dias a autobiografia do saudoso Papa Francisco que intitulou de “Esperança”. Logo nas primeiras dezenas de páginas, percebe-se a sua grande preocupação com a guerra. Alude à primeira e segunda guerras mundiais, mas também às mais recentes, afirmando, reflexivo, que “a guerra é uma loucura![…]a guerra destrói tudo[…] A guerra é loucura e o seu louco plano de desenvolvimento é a destruição”. E umas quantas páginas à frente acrescenta que tal sucede “com o olhar de Caim em vez de com o de Abel”. Perante o que se passa nos dias que correm, os grandes do mundo em que vivemos comportam-se assim, com o olhar de Caim.
Infelizmente, os conflitos são muitos e há os que chamam mais a nossa atenção pela sua crueza, se é que haverá algum que não seja cruel. Um deles é a guerra extremista que Israel promove em território palestiniano. Como é possível, perante a “barbárie da guerra”, como o Papa Leão XIV caracterizou o que se passa em Gaza, que o mundo possa assistir praticamente impávido e sereno? Será que não está a perceber nada do que está a acontecer? O presente é a base do futuro em comunidade. Por isso, ir na onda dos que mandam no mundo em que vivemos, cada vez mais desumanizado, não é escolher a melhor parte.
Que tempo sobra para garantir a vida de tantos que sofrem atrocidades e não têm com que matar a fome, como os palestinianos de Gaza? Que direito tem Israel de destruir vidas e território organizado de ruas e edifícios de milhares de famílias que vivem neles desde que existem ou que os construíram com o esforço de uma vida e onde descansam e se reúnem no fim do dia de trabalho, tratam e educam os seus filhos, acolhem amigos e familiares? Destruídos os seus lares, despojados de segurança, como podem manter estes hábitos salutares? Como fica o direito à felicidade de todas estas pessoas, de tantas crianças, se nem sequer lhes é permitido alimentarem-se? Apesar disso, há quem não se importe, que tenha a mesma atitude de Caim. São vários os grandes que podiam impedir o que está a acontecer, como o quiseram fazer noutros casos, ainda que com mais ou menos evidências de que defendiam interesses económicos e/ou geoestratégicos. Têm preferido a pior parte, não fazendo nada ou sequer o suficiente.
Por cá, o Governo tem ido na onda de outros Caim. Não admira que não veja ou não queira ver o que as imagens e os relatos dos órgãos de comunicação social transmitem, às vezes em directo. A respeito do que se está a passar no médio-oriente, lamento dizê-lo, por que não me considero de esquerda radical, longe disso, mas tenho de admitir que as declarações do Livre e do Bloco de Esquerda foram absolutamente pertinentes a propósito de Portugal se ter oposto à inclusão da referência à insegurança alimentar em Gaza no documento final da XV reunião da Conferência de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Há milhares de palestinianos impedidos pelo Governo de Israel de aceder a bens essenciais, muitos dos quais têm sido mortos pelas armas sionistas quando esperam as migalhas que conseguem chegar da comunidade internacional. Cidadãos palestinianos mortos à fome e com fome! Desumano! Ainda assim, Portugal “fez fica-pé” para que não fosse incluída uma referência à insegurança alimentar dos palestinianos de Gaza e “a Palestina não passou do rascunho”, como referiu o Público de 18 Julho. Perante a realidade, não é tolerável nem sustentável que se tenha pruridos em admitir que existe insegurança alimentar em Gaza e se considere que fazê-lo é instrumentalizar a fome “como método de combate em contextos de conflito”, como acabou por ficar redigido no documento final da reunião da CPLP. Israel tem massacrado o povo palestiniano aos olhos de todos, ultrapassando todos os limites. Nada fazer nesta voracidade é “cobardia” e “hipocrisia”, é ter a atitude de Caim. Apoiar o opressor é não estar “do lado certo da História”, é escolher a pior parte.