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Leão XIV

 


 

 


 

1. A eleição do 267.º Pontífice da história do catolicismo, no passado dia 8 de Maio, foi para mim uma dupla surpresa: quando foi anunciado “Habemus Papam”, a surpresa do nome adoptado, depois a escolha recair num cardeal norte-americano. Robert Francis Prevost, 69 anos, nascido na cidade de Chicago e, como o nome indica, com ascendência normanda, siciliana e espanhola; creio que nunca um Papa foi tão “misturado” por ascendências e culturas diferentes, o que faz dele um cidadão do mundo no sentido católico do termo. Acresce que este cidadão norte-americano passou tanto tempo no seu país de origem como no Peru, cuja nacionalidade também adquiriu, e onde foi missionário e depois bispo, a cuja diocese se dirigiu em espanhol: "Permitam-me também uma palavra, uma saudação (...) de modo particular à minha querida diocese de Chiclayo, no Peru, onde um povo fiel acompanhou o seu bispo, compartilhou sua fé". O bispo Prevost, americano de Chicago e de Chiclayo, une em si também as duas Américas.


 

2. Quase tudo parece ter sido dito sobre Leão XIV, mas a trajectória do actual Papa e algumas das suas alocuções mostram que nunca é possível dizer tudo. Ele próprio logo anunciou que é da ordem religiosa dos Agostinianos, da qual foi superior geral, o que lhe permitiu viajar e conhecer regiões, nações e continentes – uma novidade por relação aos seus predecessores. Renovou o apelo à unidade durante a homilia na missa de entronização, um rasgo da espiritualidade agostiniana e da sua regra. De facto, Santo Agostinho, Bispo de Hipona, pedia: "Sobretudo, vivei unanimemente em casa, tendo uma só alma e um só coração voltados para Deus".

Irradiando uma paz interior “palpável” (segundo testemunhos) entre os cardeais “papabili”, é outra peculiaridade dum discípulo de Santo Agostinho, quem buscou Deus por toda a parte, encontrando-O finalmente dentro de si – “interior intimo meo” (no mais íntimo de mim) –, assim expressando que Deus é mais íntimo a cada pessoa que ela própria. E foi a “paz” também a sua primeira palavra – “a paz esteja convosco” –, que repetiu dez vezes, e que foi lema de intervenções subsequentes, pedindo uma “paz desarmada e desarmante”.


 

3. Obviamente, um nome é também um programa. Se o leão é o símbolo do evangelista São Marcos, sugerindo firmeza na fé, se Leão I (440–461) foi um grande papa – donde o título de Leão Magno –, que, em 452, enfrentou Átila, o Huno, e o convenceu a não invadir Roma, Leão XIII (1878-1903) notabilizou-se com a encíclica Rerum Novarum (“Das Coisas Novas”), que, publicada em 1891, estabelece a Doutrina Social da Igreja. Em fins do século XIX, eis o cenário da expansão das fábricas e das novas técnicas: "(…) pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada." E fustigava: "A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e de opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários." Foi tal o impacto que Pio XI publicou Quadragesimo Anno (1931) no 40ª aniversário da encíclica de Leão XIII e João Paulo II, nos cem anos, Centesimus Annus (1991). Em 2025, Leão XIV aduz: "Mas há várias razões, principalmente porque o Papa Leão XIII, com a histórica Encíclica Rerum Novarum, abordou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial; e hoje a Igreja oferece a todos o seu património de doutrina social para responder a outra revolução industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial, que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho". Se no tempo de Leão XIII ocorreu a revolução industrial, hoje estamos no início da revolução digital.


 

4. A sua tríplice competência nas matemáticas, direito e teologia, a sua rica experiência pastoral e missionária, credenciam-no a responder de forma racional e espiritual ao desafio do cientificismo contemporâneo e aos choques já causados pela inteligência artificial. Em 17 de Junho, dirigindo-se aos bispos de Itália, referiu que "a IA, as biotecnologias, a economia de dados e as redes sociais estão transformando profundamente a nossa percepção e experiência de vida. Nesse cenário, a dignidade da pessoa humana corre o risco de ser achatada ou esquecida, substituída por funções, automatismos, simulações. Mas a pessoa não é um sistema de algoritmos: ela é criatura, relação, mistério". Afinal prossegue o lema do Papa Francisco, quando este apelava por uma “algor-ética” (algoritmos conforme a princípios éticos).


 

5. Sabemos como Prevost usa com a mesma facilidade as botas de borracha e a mozeta bordada: vimo-lo, aplaudido, na varanda da Basílica de São Pedro, aquele mesmo que outrora montava a cavalo pelos caminhos poeirentos da diocese de Chiclayo. O seu sorriso acolhedor é acompanhado pelo seu olhar penetrante, que mostra saber para onde vai; aliás, propôs-se ser como "massa, um pequeno fermento de humidade, de comunhão, de fraternidade", pois, "no nosso tempo, ainda vemos demasiadas discórdias, demasiadas feridas causadas pelo ódio, pela violência, pelo preconceito, pelo medo do diferente, por um paradigma económico que explora os recursos da Terra e marginaliza os mais pobres". Leão XIV é certamente o Pontífice que poderá celebrar, em 2033, os dois mil anos da morte e ressurreição de Jesus, alfa e ómega de todas as coisas segundo a fé, cuja mensagem impregnou todo o orbe e transpôs todas as fronteiras – políticas, culturais, religiosas, geográficas, étnicas, linguísticas – em dois milénios de era cristã.


 

6. Antes de ser elevado ao papado, o cardeal norte-americano Robert Francis Prevost não hesitou em criticar a política de Donald Trump e do seu vice-presidente na rede X. Em 3 de Fevereiro, retomou o texto duma teóloga norte-americana de origem cubana, intitulado "J.D. Vance está errado: Jesus não nos pede para classificar o nosso amor pelos outros". Sobre Trump, o Papa Francisco disse em 2016: "Uma pessoa que quer construir muros e não pontes não é cristã".

Tal como João Paulo II, primeiro papa oriundo da Polónia, cuja intensa actividade se repercutiu também na implosão do comunismo no Leste europeu, poderá ser que, com Leão XIV, primeiro papa oriundo dos Estados-Unidos, haja um influxo similar, que devolva ao Novo Mundo o que este já foi – terra de acolhimento e promotor da paz e do desenvolvimento.


 

O autor não segue o denominado “acordo ortográfico”

Acílio Estanqueiro Rocha

Acílio Estanqueiro Rocha

28 junho 2025