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O Palácio da(o) Ventura

 

Estava eu a reler o velho poema de Antero de Quental, O Palácio da Ventura, quando percebi que os seus versos já não vivem apenas nas páginas gastas dos manuais escolares — eles ecoam, hoje, na pele aberta do nosso país. Não são passado: são espelho. São, tristemente, a descrição de um presente onde a esperança tropeça nas mesmas pedras há séculos.

Os cavaleiros da espada quebrada e da armadura rota.

Somos, nós, portugueses, os cavaleiros da espada quebrada e da armadura rota. Não por falta de luta, mas por excesso de fé mal investida. Marchamos há gerações por trilhos de promessas, guiados por vozes que nos garantem: mais adiante está o palácio. Ventura, chamam-lhe. O lugar onde tudo se resolve. Onde Portugal se cumpre.

Mas quando, finalmente, batemos à porta, o que encontramos? Nada. Apenas aquilo que Antero previu: "Silêncio e escuridão – e nada mais."

Insistência em Acreditar.

O que nos trouxe até aqui não foi ingenuidade. Foi a insistência em acreditar, mesmo quando tudo apontava o contrário. O país que se construiu sobre o mito da descoberta, da epopeia e da coragem também se habituou à espera por um salvador. E a cada crise, a cada ciclo de desilusão, lá volta o velho desejo sebastiânico de um homem providencial que nos tire do buraco sem que tenhamos de escavar.

Carregamos nas costas décadas de desilusão: corrupção que já nem escandaliza, justiça que falha onde devia proteger. Cansados. Fartos. Não só no corpo — na alma.

O Salvador.

E é então que, como nas histórias antigas, aparece uma figura. Um vulto que se ergue com voz grossa e dedo em riste. Um homem que parece ouvir o nosso cansaço e transformá-lo em ação. Um salvador. Um D. Sebastião reeditado. Chama-se André Ventura.

Promete limpar o país. Fazer justiça. Castigar os culpados. Devolver dignidade a quem "merece". Fala como nunca ninguém falou. Grita o que muitos murmuram no desespero. E por isso o povo escuta. Porque está cansado de silêncio. Porque quer acreditar que há solução. Que há alguém com coragem.

A ilusão

Mas é aí que a ilusão começa. Porque Ventura não oferece soluções — oferece culpados. Não constrói pontes — desenha muros. Não ilumina — aponta holofotes para os mesmos de sempre, os mesmos alvos fáceis. Fala de parasitas, de minorias, de "os que vivem à custa do Estado". A sua política é a da divisão, da caça às bruxas social.

Fala de parasitas. De quem vive à custa do Estado. De etnias inteiras, de bairros inteiros, de grupos inteiros. E promete o fim do parasitismo.

E depois

Acabam-se os apoios. Acabam-se os subsídios. Os parasitas vão trabalhar. O povo vibra. Quem nunca pensou o mesmo, num momento de frustração? Mas depois vem a pergunta: e depois? O que acontece quando se corta? Para onde vão essas pessoas? O que se faz com elas?

Ventura não responde. Não fala de inclusão. Não fala de formação. Não fala de soluções. Apenas repete: basta de privilégios. E assim transforma o vazio em discurso. Faz da ausência de resposta uma suposta coragem. Mas não é coragem — é fuga. Mais do que fuga, é oportunismo. É saber que, num país exausto, há fome por frases curtas e certezas absolutas.

A verdade.

Porque a verdade é simples e difícil: não há resposta fácil para problemas complexos. Não se combate exclusão com exclusão. Não se constrói um país ignorando metade dele. Mas Ventura sabe que a verdade cansa. Que a dúvida desgasta. E por isso vende certezas, mesmo que vazias.

E é perigoso. Porque aos poucos, o discurso torna-se ação. Os gestos tornam-se leis. E aquilo que era retórica começa a transformar a realidade. 

No início, convence. A raiva alimenta a crença. O povo quer acreditar. Mas a realidade — teimosa, incansável — acaba por chegar. E quando chega, revela tudo: que o Messias não vem. Que o palácio era uma ilusão. Que Ventura, afinal, prometeu luz, mas entregou escuridão.

A promessa.

A promessa era de um país mais justo. Mas como se pode falar de justiça sem empatia? Como se pode governar apenas para quem se encaixa num molde estreito de "cidadão exemplar"? O resultado é inevitável: cresce o medo, cresce a divisão, cresce a frustração. No fim, resta o mesmo vazio de sempre.

Porque o palácio da Ventura nunca foi real. É uma imagem, um espelho distorcido do nosso desejo de redenção. Mas em vez de curar feridas, abre outras. Em vez de unir, separa. Em vez de conduzir à luz, afunda-nos ainda mais na penumbra.

E quando voltarmos a bater à porta, exaustos, esperançosos, o que vamos encontrar?

O mesmo que Antero encontrou: "Silêncio e escuridão – e nada mais."

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Sara Silva

25 maio 2025