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De Nero a Zero

“Caríssimos, vivamos esta Quaresma, ainda mais no Jubileu, como tempo de cura. Também eu a experimento assim, na alma e no corpo. Por isso, agradeço de coração a todos aqueles que, à imagem do Salvador, são instrumentos de cura para o próximo com a sua palavra e o seu saber, com o afeto e a oração. A fragilidade e a doença são experiências comuns a todos nós; no entanto, com mais razão somos irmãos na salvação que Cristo nos concedeu”, assim o escreveu o Papa Francisco no Ângelus do IV domingo da Quaresma, do passado dia 30 de março. Pouco antes, a 2 de março inspirava-nos desde a Policlínica Gemelli: “Sinto no meu coração a «bênção» que se esconde na fragilidade, porque é precisamente nestes momentos que aprendemos ainda mais a confiar no Senhor; ao mesmo tempo, agradeço a Deus por me ter dado a oportunidade de partilhar em corpo e espírito a condição de tantas pessoas doentes e sofredoras”.

É segunda-feira de Páscoa, cai a mensagem no telemóvel: “Morreu o Papa Francisco”. Inicialmente nem damos importância, é algo de inverosímil. Depois consultamos o site da internet do Vatican News e confrontamo-nos com o choque da realidade: “Anúncio do Camerlengo Farrell da Casa Santa Marta: "Às 7h35 desta manhã, o Bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do Pai. Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e da Igreja". O Papa do “todos, todos” e do “não tenhais medo”, que nos ensinou a viver os valores do Evangelho com fidelidade, coragem e amor universal, especialmente em favor dos mais pobres e marginalizados.

O decesso do Papa transporta-nos para o período que sucedeu à Ressureição. Apenas três décadas depois, o Império Romano é governado pelo tirano Nero, recordado por uma série de execuções sistemáticas, incluindo a da sua própria mãe e o seu meio-irmão Britânico, e sobretudo pela crença generalizada de que, enquanto Roma ardia, estaria a compor com a sua lira, além de ser um implacável perseguidor dos cristãos. Afim de fim de extirpar o rumor que teria sido o autor moral do incêndio, segundo Tácito, Nero inventou uns culpados e executou com refinadíssimos tormentos os que, aborrecidos pelas suas infâmias, chamava o vulgo cristãos. Assim, começou-se por deter os que confessavam a sua fé; depois pelas indicações que estes deram, toda uma ingente multidão ficou convicta, não tanto do crime de incêndio, quanto de ódio ao género humano. A sua execução foi acompanhada por escárnios, e assim uns, cobertos de peles de animais, eram rasgados pelos dentes dos cães; outros, cravados em cruzes eram queimados ao cair o dia como se fossem luminárias noturnas. Para este espetáculo, Nero cedera os seus próprios jardins e celebrou uns jogos no circo, misturado em vestimenta de auriga entre a plebe ou guiando ele próprio o seu carro. Os desmandos de Nero provocaram uma revolta no Exército e no Senado. Foi declarado um inimigo do estado e um fora da lei; caído em desgraça, foi obrigado a suicidar-se para não ser preso pela Guarda Pretoriana. De Nero a Zero.

Em tempos de eleições sucessivas para o parlamento, para o governo local e para o mais alto magistrado da nação, os exemplos opostos de Francisco e Nero deviam recordar os nossos políticos de quanto o poder é efémero. É vê-los a lutar por um lugar na primeira fila, a cumprimentar, quando o fazem, com altivez e desdém, aqueles que os elegem e a quem deviam servir em missão pública, assumindo com rigidez e ignorando o humor britânico, a frase do grande Churchill quando dizia que o melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com o eleitor médio. Quantos já vimos no poder, usando-o até ao limite num sistema em que o “check and balances” é imperfeito, quantos assumiram o estatuto de deputados há cerca de um ano, agindo como se tivessem alcandorado ao Olimpo e agora nem das listas constam, passando da soberba para a situação de ignorados; os que lutam pelo poder, se perderem saem pela porta pequena, enjeitados. E quantos presidentes da câmara que governaram as cidades a seu belo prazer, sempre no melhor lugar da tribuna do estádio da cidade, perdido o cargo, no primeiro ano ainda conseguem mendigar um lugar na 3ª ou 4ª fila, olhando com indisfarçada inveja para o seu sucessor que agora é o alvo de todas as adulações e ocupa o seu anterior lugar; depois nem isso.

O Homem vale pela obra que deixa. Francisco perdurará sempre nos nossos corações.

Carlos Vilas Boas

Carlos Vilas Boas

24 abril 2025