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“Glasnost”, quando? (1)

1. No final do século XX, por toda a União Soviética – e todo o mundo – ressoavam as palavras “perestroika” (reestruturação) e “glasnost” (transparência), relativas à política levada a cabo por Mikhail Gorbachev, então Secretário-Geral do Partido Comunista (1985-1991); se o 1.º termo aludia às reformas para pôr fim à centralização económica instaurada por Lenine após a Revolução Russa (1917), o 2.º exprimia uma política de aproximação, que, além do combate à corrupção, visava acabar com o sistema de partido único, encerrar o Gulag, reabilitar as vítimas de Estaline, pôr fim à censura, amnistiar os presos políticos, etc.

Esta lembrança veio-me, ao ouvir há dias, surpreso, a informação dada por José Milhazes, historiador, de que a Academia das Ciências da Rússia acaba de publicar um estudo sobre os valores que os russos mais prezam – que faz anualmente –, sendo a justiça (33%), a paz (29%), os direitos humanos (21%), a lei e a liberdade (21%) os mais estimados; ao invés, são postergados para o fim (18.º lugar) o anelo da União Soviética (6%), do Império Russo em 22.º lugar (5%), a ortodoxia em 24.º (3%), a autocracia (3%) em 27.º. Tal novidade, que enche de júbilo quem muito admira a arte e a literatura russa, põe por terra a tese propalada a toda a hora pelos media afectos ao Kremlin de adesão do povo à guerra e ao regime autocrático. Assim, posso repetir o que já escrevi: os que dizem que os russos não foram feitos para a democracia, erram!

 


2. Como disse Tania Rakhmanova ao semanário “La Vie”, só "no final da presidência de Mikhail Gorbachev e no início da de Boris Ieltsin surgiu um embrião de democracia. Mas matámo-la quando Ieltsin dissolveu o Congresso dos Deputados do Povo em 1993 […] O Presidente da República impôs uma nova Constituição que conferia mais poderes ao Presidente; a partir daí, a democracia era o que convinha ao líder". Tania, cientista e jornalista (realizou mais de 20 filmes, incluindo “A tomada do poder por Vladimir Putin”), defensora dos direitos humanos, escreveu “Au cœur du pouvoir russe: enquête sur l'empire Poutine” (2014).

Mas, recuando ainda na história, só no início do século XX, após a abdicação do czar Nicolau II, com Alexander Kerensky (à frente do II Governo provisório da Rússia, Julho-Outubro 1917), que perfilhava um socialismo democrático, luziu uma réstia de democracia, que depressa se estiolou quando os bolcheviques o derrubaram, exilando-se em Paris (até 1940) e em Nova Iorque. E recuando ainda mais na longa história russa, é preciso remontar até Miguel I (governou de 1613 a 1645) para referir um czar próximo do povo, (incrementou a paz e o desenvolvimento); todos os outros czares excederam-se uns aos outros em crueldade e nepotismo.

 


3. É conhecido o famoso opositor, Alexei Navalny, detido nas masmorras de Putin – como tantos outros –, envenenado numa viagem aérea na Rússia (salvo e curado na Alemanha), que foi peremptório: "O único objectivo de Putin e do seu regime é deter as rédeas do poder para resto da vida, tendo todo o país como seu património pessoal e confiscando as suas riquezas para si e seus amigos". Deve referir-se também Vladimir Kara-Murza, também perto da morte (2015) depois de ter sido envenenado, três meses após a morte do seu amigo Boris Nemtsov.

 Em 2017, Kara-Murza foi novamente envenenado, mas sobreviveu. Deixou a Rússia e viajou muito para consciencializar o mundo sobre a corrupção e as violações dos direitos humanos na sua terra. É ele que testemunha: "Há agora toda uma geração na Rússia que cresceu sem conhecer outra coisa que o actual regime político, que nunca viu outro rosto na televisão senão o de Putin ". Tendo ido ingenuamente à Rússia, foi condenado a 25 anos de prisão, decisão conhecida um ano após a sua prisão; tal condenação corresponde à pena máxima para o crime de traição; terá sido aplicada porque Kara-Murza reiterou as críticas à guerra na Ucrânia, em pleno tribunal, na última sessão.

 


4. Boris Nemtsov, o carismático líder da oposição, morto a tiro perto do Kremlin, alertara pouco antes do seu assassinato: "A Rússia está-se a transformar rapidamente num estado fascista. Já temos propaganda de Estado inspirada na Alemanha nazista. Isto é apenas o começo". Foi ministro da energia e vice-primeiro-ministro de Ieltsin, e só não lhe sucedeu por pressão dos oligarcas (opusera-se à privatização desregrada das empresas estatais, propondo leilões justos e limpos e sem vencedores à partida). Como seria o mundo diferente, se, em vez de Putin, Ieltsin tivesse escolhido Nemtsov.

Em 2018, a rua em frente à embaixada russa em Washington DC foi renomeada de "Boris Nemtsov Plaza"; em Praga e em Vilnius (Lituânia) fez-se o mesmo. Vale a pena ler a entrevista “Por outra Rússia: a luta de Boris Nemtsov continua em Portugal” (“Público”, 13/11/2022), com Zhanna, a sua filha, que vive em Portugal com o marido, em ligação com a Fundação Boris Nemtsov (Praga) para manter vivo o legado do pai.

 


O autor não escreve segundo o denominado “acordo ortográfico”

Acílio Estanqueiro Rocha

Acílio Estanqueiro Rocha

12 setembro 2023