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Vida eterna, esperança cristã e sufrágios

Este mês de Novembro, iniciado com a celebração de Todos os Santos e Fiéis Defuntos, é um mês especialmente dedicado também ao sufrágio de todos quantos, nossos familiares e amigos, queremos recordar com carinho na oração mais intensa e na caridade mais operosa.

Na sua encíclica «Salvos na Esperança», Bento XVI trata aprofundadamente do problema da vida eterna, do juízo e demais novíssimos, com uma delicadeza e profundidade que bem merece ser repetidamente revisitado para que nos inebriemos com as suas sábias e iluminadoras considerações.

Uma das primeiras noções a clarificar, dentro do que é possível, é a de 'vida eterna'. Marko Rupnik, que também é um refinado perscrutador da Sagrada Escritura, cujas homilias a Congregação do Clero apresenta como subsídios para a pregação, na do 28.º domingo, de 14 de Outubro, a propósito do jovem rico que pergunta a Jesus o que deve fazer para ter em herança a vida eterna, distingue entre a vida como bíos, baseada sobre as coisas e as minhas forças; a vida como psiché, entendida como vontade de viver, e a zoé, a vida com dom recebido, a vida eterna, melhor, a vida do Eterno, a vida que jamais acaba, um modo de ser que não é ameaçado pelas sombras da morte.

Isso significa compreender a vida, não como o faz um pagão, pois a imagina dependendo do empenho pessoal de cada um. Não, a vida é um acto de fé que significa acolhimento da obra de Deus. Já diz São João, 6,63, que é o Espírito que dá a vida(zoé). É portanto a vida do Filho, um dom, pelo que a única maneira de a viver é como dom.

Se há qualquer coisa que nos torna tristes, que nos fecha em nós próprios, é porque ainda não estamos a viver o dom como dom. Estamos a tentar fazer qualquer coisa pela qual julgamos 'merecer' o dom. Não é para isso que fomos criados, mas para vivermos na gratuidade do dom, pois o Espírito é que vivifica... as palavras que vos digo são espírito e vida (zoé). Por isso Pedro pergunta: «A quem iremos, Senhor, só Tu tens palavras de vida eterna». (rémata zoés aióniu)(Jo 6, 68)

O que mais profundamente nos habita é o desejo insaciável de «vida bem-aventurada, a vida que é simplesmente vida, pura 'felicidade.» (Spe Salvi, nº 11) «Não sabemos realmente o que queremos; não conhecemos esta 'vida verdadeira'; e, no entanto, sabemos que deve existir algo que não conhecemos e para isso nos sentimos impelidos» (nº 11)

A eternidade será algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Será o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe. Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria». (nº 12)

Precisamos ainda de clarificar o que entendemos por juízo final. Não pode ser visto como algo de aterrador, mas como a imagem decisiva da esperança. É uma imagem que apela à responsabilidade e onde «todo o nosso medo tem lugar no amor. Deus é justiça e cria justiça. Tal é a nossa consolação e a nossa esperança. Mas, na sua justiça, Ele é conjuntamente também graça». (nº 44).

A imagem do fogo purificador não pode ser materializada no fogo físico, como todos os artistas de antanho pintaram o purgatório e também o inferno, mas na purificação no encontro com o fogo do amor de Deus. Bento XVI cita alguns teólogos recentes, segundo os quais: «o fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador.

Ante o seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com Ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos. As coisas edificadas durante a vida podem então revelar-se palha seca, pura fanfarronice e desmoronar-se. Porém, na dor desse encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação. O seu olhar, o toque do seu coração cura-nos através de uma transformação certamente dolorosa ,'como pelo fogo'.

Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do seu amor nos penetra como chama, consentindo-nos, no final, sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo, totalmente de Deus... O momento transformador desse encontro escapa à cronometragem terrena: é tempo do coração, tempo da 'passagem' à comunhão com Deus no Corpo de Cristo». (nº 47) «Às almas dos defuntos pode ser dado 'alívio e refrigério' mediante a Eucaristia, a oração e a esmola... Nunca é tarde demais para tocar o coração do outro, nem é jamais inútil». (nºs 47 e 48)

Como cristãos, devemos perguntar-nos: «o que posso fazer a fim de que os outros sejam salvos e nasça também para eles a estrela da esperança? Então terei feito também o máximo pela minha salvação pessoal». (nº 48)


Autor: Carlos Nuno Vaz
DM

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3 novembro 2018