Como também não é irrelevante analisar criticamente, à luz dos valores e dos princípios que regem o Estado de Direito democrático, a comprovada atitude do Governo de haver permitido que uma lei da República fosse redigida por um escritório de advogados contratado pelo dito António Domingues, no seu próprio interesse, para consagrar aquela isenção.
Num e noutro casos, do que verdadeiramente se trata é de investigar e discutir comportamentos susceptíveis de integrar, na primeira hipótese, um crime de perjúrio e, na segunda, uma entorse grave às regras constitucionais que proíbem leis feitas à medida, isto é, ao arrepio do carácter geral e abstracto que é apanágio de toda e qualquer legislação, e que o Governo delegue ou conceda, sub-repticiamente, a escritórios de advogados, sem autorização expressa da Assembleia da República (AR), o poder de redacção legislativa.
E, simultaneamente, apreciar o comportamento que, perante tais atitudes, foram assumidos pelos órgãos de soberania a quem compete velar pelo cumprimento da Constituição e fiscalizar a acção governativa: Presidente da República (PR) e AR, respectivamente.
Ora, no momento em que escrevo, conhecidos que são já emails e sms’s trocados entre António Domingues e o ministro das Finanças e entre este ministério e o escritório de advogados por aquele contratado, resulta com clareza que o ministro, conscientemente, mentiu ao Parlamento.
E resulta ainda ser facto assente haver-se tratado de uma lei encomendada à medida para corresponder ao interesse de colocar os seus beneficiários à margem da obrigação de transparência que a lei faz recair sobre quem exerce funções ou cargos públicos no Estado ou em instituições públicas sob sua gestão; e de uma lei projectada, redigida e negociada pelos advogados do beneficiário em conjunto com os serviços jurídicos de um ministério.
Perante esta clarividente factualidade, que atitude tomou o PR?
De início, ouvido António Costa, tentou proteger o ministro, desvalorizando a palavra que por este teria sido dada, com o incrível argumento de que só um documento escrito (presume-se que oficial) do visado poderia ser considerado como prova da veracidade das suas declarações, subentendendo-se que mails ou sms’s não seriam considerados como válidos.
Depois, quando os mails e os sms’s já haviam caído no domínio de alguns órgãos de comunicação social e a sua existência lhe foi garantida por outras fontes credíveis, elaborou uma nota oficial na qual afirmava aceitar a continuação de Mário Centeno para garantir o “estrito interesse nacional”.
Quer isto dizer que o PR não só não ficou convencido das explicações dadas pelo ministro em conferência de imprensa, no próprio dia da nota, de que se havia tratado de um “erro de percepção mútua”, como se dispôs a tolerar a sua manutenção no cargo – à semelhança do que, momentos antes, o primeiro-ministro fizera –, em nome duma pretensa boa estabilidade económico-financeira do país, de que o ministro seria credor…
Com o devido respeito, qualquer das duas atitudes do mais alto magistrado da nação é eticamente reprovável: numa, desvaloriza completamente a palavra dada por qualquer político; noutra, considera aceitável a mentira, quando a demissão do mentiroso possa pôr em causa o interesse do Estado numa clara assumpção da maquiavélica tese de que os fins justificam os meios! E, em ambas, a tibieza e a pusilanimidade de deixar impune um crime de perjúrio fortemente indiciado.
Para além disso, promulgando um Decreto-Lei com a génese e características acima enunciadas, o PR demitiu-se de uma das suas mais relevantes funções: a de garante da constitucionalidade da legislação da República.
Por seu turno, na AR, o PS e os partidos de esquerda com ele coligados, actuando concertadamente, inviabilizaram a apreciação, pela Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a gestão da CGD, da documentação que António Domingues para ali enviou, com a alegação de que estava fora do objecto do inquérito, impedindo assim a Comissão de avaliar uma prova importante sobre elementos essenciais de um eventual crime de perjúrio.
Assim sendo, julgo não ser excessivo afirmar que um sistema político que tais atitudes tolera é, decididamente, um regime promíscuo, sem honra e sem futuro!
Autor: António Brochado Pedras