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Um pouco de tento na língua

Um artigo do Diário de Notícias (10/11/2021) sobre a influência de youtubers brasileiros na aprendizagem da língua por parte das crianças portuguesas desencadeou uma enésima controvérsia dos dois lados do Atlântico. Na Folha de São Paulo, o escritor Sérgio Rodrigues insurgia-se contra “um antibrasileirismo à solta na cultura portuguesa”, fruto de um “nacionalismo rançoso”. Compatriotas do vencedor do Grande Prémio Portugal Telecom de Literatura (2014) enfatizaram a arrogância lusitana, os resquícios de um colonialismo de segunda – como se os houvesse de primeira –, a nossa insignificância e por aí adiante.

Não se fez esperar a reação assanhada de internautas lusos em torno da lengalenga do modo português de estar no mundo, da usucapião sobre a língua e da defesa da honra coletiva, apontando-se ainda o dedo a uma série de pretensas imperfeições da sociedade brasileira. De ambos os lados, mentes menos toldadas por rancores genealógicos tentavam lembrar que o cerne da questão talvez não esteja apenas no uso da língua, mas igualmente no acesso não supervisionado dos mais pequenos a conteúdos em linha. Não obstante, o atual contexto sociopolítico – acirrado pelos recentes casos de discriminação de alunos brasileiros em Portugal, em todos os níveis de ensino – é pouco propício à ponderação e compreensão mútuas.

As redes sociais da jornalista portuguesa na origem desta querela – por sinal, com um trabalho sério que dá lugar a diversos pontos de vista – foram tomadas de assalto por uma horda de justiceiros de fim de semana. Quando a mensagem não agrada, desfeiteia-se o mensageiro. A peleja estendeu-se ainda às caixas de comentários das notícias e sites que replicaram a informação. Quando cheira a ajuste de contas, a turba leva tudo à frente. Numa coisa tem o escritor brasileiro razão, cheira aqui a “nacionalismo rançoso”. Mas no plural. Aquém e além Atlântico, conforme o local onde cada um se encontrar.

Pela parte que nos toca, é humana e culturalmente compreensível que queiramos transmitir às gerações vindouras uma série de usos, normas e tradições em torno dos quais se estrutura a casa comum. Contudo, sempre que uma mudança parece abalar certezas existenciais, é bem mais fácil incriminar o outro, o estrangeiro, o que vem de fora. A língua é um ser vivo, plural, em constante mutação. Não deixa de ter regras. Incomoda-me muito mais uma vírgula fora do lugar, um erro de concordância ou uma frase mal escrita do que a diversidade do sotaque e/ou de termos vindos de terras de Vera Cruz. A influência de youtubers brasileiros sobre os mais novos – e deveríamos preocupar-nos bem mais com os conteúdos – é uma oportunidade para refletirmos sobre a transmissão desse património comum que a história nos legou. Não temos obrigatoriamente que trilhar os mesmos caminhos. Também não temos que estar em litígio permanente.

Em novembro de 2013, na Universidade de Clermont-Ferrand (França), intervim num seminário, no âmbito de um Mestrado em Língua e Cultura Portuguesa. Durante a apresentação, uma aluna tomou a palavra. Não consegui identificar distintamente o sotaque. Presumi que era brasileira, quando afinal era romena. Surpreso, inquiri:

– Como se faz que fala tão bem português?

– Foi por causa dos "Morangos com Açúcar"...

– Desculpe, não percebi!?

– Sim, na Roménia passava a série "Morangos com Açúcar", quando era adolescente. Foi aí que comecei a aprender português... Depois vi algumas novelas brasileiras e continuei...

Não pude deixar de sorrir. Se soubessem lá para as bandas da TVI, ainda pediam um subsídio ao Instituto Camões. Muitos caminhos levam a Torga, Machado de Assis, Pepetela ou Mia Couto. A língua tem razões que só o coração conhece. A língua deveria ser sempre o lugar onde pinta um clima…


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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20 novembro 2021