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“Soldados” desconhecidos

A condecoração atribuída pela Rainha Isabel II de Inglaterra ao português Maciel Vinagre, surpreendeu o próprio e o mundo. Este madeirense é um dos responsáveis pela limpeza e alimentação de dois hospitais britânicos durante a pandemia de covid-19; pelos vistos tão bem o fez que mereceu estar na lista de condecorados da soberana britânica. É gratificante observarmos atos destes. Na verdade estamos acostumados a ver pendurar medalhas e comendas aos que, por qualquer motivo, se impuseram à consideração geral: desportistas, escritores ou artistas de qualquer coisa e nunca vimos ser preocupação de ninguém medalhar um servidor pequeno; mas há homens que prestam serviços “humildes” como recolha do lixo, varredores de rua, porteiros ou eletricista, e tantos outros servidores que estão na sombra. Talvez porque estes “soldados” são como a tímida violeta que passa no anonimato silencioso do prado imenso! A placa da comenda não tem valor senão pelo reconhecimento; a comenda é um afago, uma carícia ao ego. E quem se pode furtar aos afagos do reconhecimento? E estes soldados desconhecidos são como os que tombaram na Flandres e lhes erigiram um monumento, por sinal bem pífio, em algumas localidades, e neste imortalizaram todos os que sofreram os horrores da primeira grande guerra e os tormentos daquela guerra de trincheiras! E na grandeza da sua dedicação, nada lhes restou senão as lágrimas de seus pais, a viuvez da mulher ou a orfandade dos filhos! Estes desconhecidos tiveram, no entanto, no soldado Milhais, O Milhões, um representante. Vem de Inglaterra um reconhecimento ao nosso “soldado desconhecido” destes tempos, o Maciel Vinagre. Quando, pelas horas matutinas, calcorreio as ruas desta cidade e vejo a luz acesa dos estabelecimentos comerciais, bancos, centros de saúde, consultórios, só vejo mulheres que limpam e asseiam os espaços destas dependências e fica-se-me a gratidão a esta gente desconhecida. E ela não voa, antes se aninha na admiração dos seus préstimos. Heroínas de salário mínimo. E quem se lembraria de lhes atribuir um reconhecimento público? Talvez ninguém, porque dizemos que são pagas para isso. Também Maciel Vinagre estava pago para limpar e prover de alimentos os dois hospitais e, no entanto, a Rainha Isabel II deu-lhe o reconhecimento público pelo seu desempenho. Mas se não há medalhas para todos os “pobres e humildes servidores”, façamos em cada um de nós, um reconhecimento do tamanho de uma gratidão. Os alicerces ninguém os vê, e, no entanto são eles que seguram a casa. Não basta a satisfação do dever cumprido, isto foi invenção de um qualquer avaro; o que vale é o reconhecimento destes desempenhos, porque neste gesto que possamos dar-lhes, eu reconheço uma dignidade humana. Que isto seja o pequeno prego que pendura um Rembrandt, um Miguel Ângelo ou um Cézanne. Humilde é o prego mas está lá na serventia. E quem fala nestes desconhecidos não esquece outros de igual valia e trabalho humilde idêntico. Tenho imensa pena que não fôssemos nós, em Portugal, a atribuir esta comenda aqueles que, por serem humildes, vivem na humildade. Fica-me esta interrogação: porque esquecemos aqueles que “por atos valorosos se vão no anonimato afogando”? Oxalá que nas quebradas da consciência coletiva, isto faça eco, e se repercuta de quebrada em quebrada. Vejo-os nos “levantados do chão”, de Saramago. Por que razão não levantar um monumento aos “Levantados do Chão”?


Autor: Paulo Fafe
DM

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2 novembro 2020