É fascinante e, por vezes, misteriosa a figura do profeta bíblico, no momento em que é chamado (assim o atestam os relatos da sua vocação) e, sobretudo, no exercício da sua missão, anunciando a Palavra de Deus e denunciando os comportamentos do povo.
Se o termo hebraico nabi’ (profeta) parece ter como significado fundamental “aquele que é chamado”, a nossa palavra “profeta”, de origem grega, significa “aquele que fala em vez de” (“dirás tudo o que eu te mandar (...)”. Eis que ponho as minhas palavras na tua boca” [Jr 1, 7.9]). De facto, o profeta bíblico fala em vez de Deus, Deus fala através dele.
São muitas as imagens ou metáforas que os textos bíblicos usam para falar da identidade e missão proféticas. Da primeira leitura de ontem (XXIII Domingo do Tempo Comum) emerge a imagem bonita e sugestiva da “sentinela” (Ez 33, 7), já presente em Ez 3, 16-21 e também usada por Os 9, 8. Como tal, são essencialmente duas as incumbências do profeta: primeiro, vigiar e escutar (“deves ouvir a palavra que sai da minha boca...” [Ez 33, 7]); depois, avisar ou advertir (“... e adverti-los, da minha parte” [Ez 33, 7]). A primeira requer atenção constante e capacidade de, ao longe, ler os sinais; a segunda exige ousadia e coragem, mesmo se as consequências se afiguram trágicas. Cabe ao profeta “espiar o horizonte da história” (G. Ravasi, Secondo le Scritture, Anno A, p. 247), a fim de nele descobrir os sinais de Deus. É tão importante e séria a sua missão que Deus lhe pedirá contas da sua inércia: “Se eu digo ao ímpio que vai morrer e tu não lhe falas para o por de sobreaviso contra a sua má conduta, ele perecerá em razão do próprio pecado, mas é a ti que Eu pedirei contas do seu sangue” (v. 8).
Vigilante, deve o profeta tocar a trombeta (Os 8, 1: “Leva à boca a trombeta”) como forma de alertar o povo para a importância da mensagem e adverti-lo para o perigo de a não levar a sério.
A função de sentinela é acometida ao profeta em diversas circunstâncias: na luta contra a idolatria (Elias é o emblema desta luta [1 Rs 18, 1-37], mas Oseias [9, 1-6] e Isaías [40, 12-26; 41, 21-29] também o dizem de modo sugestivo); na denúncia da incoerência entre o culto e a vida (Isaías [58] e Amós [5, 21-27] são os profetas que o dizem de forma mais assertiva e incisiva); no combate a injustiça social (Am 5, 10-15); no apelo à fé e à esperança do povo (Ezequiel, no cativeiro da Babilónia).
O profeta bíblico seria uma peça de museu, adormecida na sua torre de vigia e silenciada pela distância histórica, se não inspirasse os profetas de hoje, que continuam a ser sentinelas, perscrutando os sinais e perigos atuais, que são os mesmos de sempre: a idolatria do dinheiro e da fama; a incoerência entre o dizer e o fazer, entre o culto e a vida; a injustiça social expressa no oportunismo e na corrupção; a falta de fé e de esperança que tornam o presente mais duro e o futuro mais sombrio.
Se o profeta bíblico é uma figura fascinante e misteriosa, não o é menos a do profeta atual, qual sentinela de uma aliança quebrada entre o ser humano e Deus e, por esse motivo, já muito fragilizada entre os humanos e mesmo na relação destes com a natureza.
Estou em crer que uma das maiores crises do nosso tempo é a escassez de profetas e a tentativa de silenciar os poucos que existem. O cristão obscurece a sua identidade e falha na missão que lhe é confiada, quando perde acutilância profética. É assim que, sem dar por isso, deixa de ser o que era o profeta bíblico: sentinela da aliança.
Autor: P. João Alberto Correia
Sentinela da aliança

DM
8 setembro 2020