O romancista e filósofo Mirce Eliade, citado no jornal Público, tem uma frase que cabe inteiramente no novo léxico que nos atinge de forma transversal: “Ser livre significa em primeiro lugar ser responsável para consigo mesmo”. O seu significado é tão ou mais perene, quanto for a capacidade do cidadão para assumir o seu papel na linha da frente da responsabilidade coletiva. O significado e o alcance da afirmação deve-nos fazer refletir sobre o papel individual e a forma como cada um enfrenta os seus medos, à medida em que responde positivamente aos apelos do coletivo. Karl Mannhen, teórico da sociologia do conhecimento, numa das suas obras de reflexão sobre a segunda Guerra Mundial, confronta-nos sobre a tipologia do Medo que tanto nos pode oprimir como instigar a reagir, despertando a capacidade de resistência do ser humano, desde logo, por nos obrigar a pensar sobre o benefício da guerra. A equação é simples: de cada vez que o ser humano se confronta em tal teatro, desperta na humanidade a vontade de por fim a um certo esgotamento, a unir-se para pôr fim ao status que conduziu os homens às leis da guerra, impelindo-o a forçar a Mudança. No ensaio escrito em 2012, “A guerra: um fato social ligado à natureza humana, ao medo e às desilusões”, Rafael Negri Gimenes, da Universidade Estadual Paulista ajuda a explicar melhor esta ideia ao refletir sobre a guerra e o homem pela ótica de dois fatores que a impulsionam: “a natureza humana e o medo e por um dos fatores que a desencadeiam: a desilusão”.
Ora, nós que funcionamos hoje numa lógica global, que enfrentamos um inimigo comum, que dá pouca margem de manobra e nos obriga a um reforço da nossa responsabilidade individual, só temos uma forma de responder ao desafio que enfrentamos: ser positivamente medroso, ter escrúpulos de forma a podermos ultrapassar a barreira da desilusão que naturalmente se apodera de cada cidadão. No que toca à natureza humana somos todos tocados pela universalidade do medo que tanto tem de corajoso como de inteligente, ainda que para muitos dos leitores, isso não passe de um estado de alma. O escritor Sergio Cortella explica de forma sintética o que deveríamos sentir nos dias de hoje, ao interrogar-se sobre a hipotética perigosidade do medo: “Perigoso é perdê-lo. Sentir medo é um sinal de inteligência. Perigoso é sentir pânico, que é incapacidade de ação. Medo é estado de alerta e uma coisa altamente positiva”.
É com esta premissa que nos devemos interrogar sobre dois dos mais importantes e perigosos fatores humanos: o comportamento e a aplicação do conhecimento. Sobre o primeiro, não tenhamos ilusões que continuamos a ser indisciplinados e que na nossa natureza, transgredir ainda é sinal de coragem, quando devia ser de estupidez. Sou testemunha quase diária desta necessidade que tantos sentem de serem invasivos para saírem das dificuldades. Por outro lado, mesmo quando nos sentimos impelidos a acatar as orientações de quem sabe mais do que nós, esquecemos quase tudo o que sabemos; uma quase amnésia auto assumida como se de uma ação profilática se tratasse, quando, na verdade, é apenas um retrato do medo de assumir responsabilidades perante o outro e o coletivo. Nesta matéria, o conhecimento adquirido, seja porque via for, é uma oportunidade e não uma ameaça à responsabilidade e nada pior para a condução humana, posta à prova num dos mais duros exercícios da humanidade, que alguns, em nome do seu interesse mesquinho, queiram assumir um papel de guerreiros de papel sem armas.
Ter Medo é tão natural como a sua sede, por que é exatamente essa potente condição humana que faz de nós, cidadãos, condutores de soluções e não de ilusões. Pensar e agir de forma diferente, conduz ao caos e à inevitabilidade da derrota. E essa é uma solução que devemos não só repudiar como combater, hoje, amanhã e sempre.
Autor: Paulo Sousa
Seja inteligente…tenha medo
DM
29 março 2020