1. Aquilo por que temos passado é algo de novo, que nos desconcerta! A minha geração nunca viveu uma coisa assim! O que vejo enquanto escrevo são escolas fechadas, creches encerradas, estradas sem carros, ruas vazias de pessoas, por vezes uma em passo apressado, uma jovem a passear o cão, um pouco depois um ancião (certamente avô) de mão dada com o netinho… E quando, uma vez por outra, vou às compras para o dia a dia, uma senhora melancólica atende-me amavelmente, luvas nas mãos e máscara no rosto. Parecem semanas quase apocalípticas, tantos são os infectados e as mortes; algo de enigmático, diferente da guerra e do terrorismo. É uma sociedade diversa, que será diferente, irá reinventar-se! Doravante os governos serão diligentes no armazenamento de material sanitário, os cidadãos mais maduros nas relações com os outros... Que sejamos algo mais após esta crise do coronavírus – escrevia há dias o filósofo Emilio Lledó no “El País” –, quais prisioneiros que se libertam da obscuridade para ver a realidade, como dizia Platão na alegoria do “mito da caverna” (República, VII).
2. Na sua Política, já Aristóteles dizia que a cidade, a polis (antiga Grécia), tem um fim – o bem comum. Ora, isto é fundamental: passar duma economia neoliberal (nos Estados, na União Europeia) que crescentemente nos asfixia, a uma outra que faça do social o centro de gravidade. É urgente priorizar a produção e distribuição dos bens e serviços que favoreçam o bem comum. Exige-o desde logo o respeito pelo esforço que profissionais de saúde fazem nos hospitais, professores no ensino, também os que laboram nos media, tantos empresários e trabalhadores (indústria, comércio, agricultura, transportes), os que se ocupam da limpeza e recolhem o lixo – exemplos grandiloquentes de dedicação pública.
Neste quadro, é inimaginável como na Europa e nos Estados Unidos se relegou a produção de bens essenciais, recorrendo-se, com a ganância do lucro, à mão-de-obra barata: muitas foram as empresas (da indústria ao comércio) que foram deslocalizadas para a China. Amiúde ecoavam os desabafos do cidadão comum, que se interrogava, estupefacto, mirando o que adquiria: como é possível só haver produtos “made in China”? Pasme-se como, por todo o Ocidente, nem sequer havia máscaras, roupas sanitárias, viseiras, ventiladores, etc. Ora, lamentavelmente, foi preciso uma pandemia – para a qual alertaram vozes autorizadas – para tornar óbvio às elites empresariais (europeias e americanas) que não poderíamos estar completamente dependentes! O cenário será pior se as empresas cobiçadas que ainda restam, por dificuldade financeira – falo da Europa –, forem negócio fácil para o gigante asiático!
Que um novo afã de relocalização industrial e comercial seja a lição que a realidade tornou óbvia! Os que deveriam ver – o cidadão comum via! – só enxergavam mais lucro... Lamentavelmente, a própria União Europeia legislara as medidas, o tamanho, a grossura, o peso, todos os detalhes para esses produtos, só que… faltava o melhor: era produzi-los do lado de cá. Quando hoje se fala mais de Estado, de mais Estado – empresários, trabalhadores, todos! –, sentimos a falta que nos faz a EDP, a REN (escandaloso!), a GALP, a ANA, os CTT, etc., bens (eram públicos) que se venderam (só se vende uma vez!); e nem a ‘troika’ obrigava a tanto, e ao que obrigava nem tudo se cumpriu (quando bulia com grandes interesses!). Oxalá se reviva uma social-democracia rejuvenescida, uma nova globalização. Esperemos que não haja mais quem sustenha que o melhor é uma crise (bélica ou não), pois, com menos população mundial se resolvem os problemas económicos: isto é retornar às mais tenebrosas sombras da caverna! Arrepia também ler na imprensa que há empresas que distribuem chorudos dividendos e prémios de gestão (esta já paga), quando empresários e trabalhadores se debatem aflitos com o que se antevê… É também crime inominável ver a especulação aproveitar-se duma crise que já fez triplicar a procura de comida (nas misericórdias, paróquias, etc.)!
3. Sobre a União Europeia, é inquietante – é mesmo “repugnante”! – constatar como, na hora da solidariedade (dos denominados “coronabonds”), há Estados que teimam no egoísmo nacional, alguns com uma política fiscal acirrada (“paraíso fiscal”), atraindo escandalosamente capitais (há empresas portuguesas cúmplices!), como é o caso da Holanda, que desvia sistematicamente em seu proveito milhares de milhões de euros (não fosse isso e os holandeses perderiam imediatamente 3% do PIB); se antes foram ágeis em acusar os europeus do Sul de viverem num forrobodó (bebem vinho e divertem-se!), afinal eles sugam os impostos que deveriam ser pagos ao nosso e a outros países do Sul.
Afinal, a alegoria de Platão mostra que na “caverna” há mais prisioneiros do que se pensava, acorrentados pelo egoísmo, a sofreguidão do lucro, a prepotência. Que o período pós-covid-19 ao menos faça que mais alguns vejam a realidade!
O autor não segue o denominado “acordo ortográfico”
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha