Era uma manhã de frio neste Novembro quente. Soprava um ventinho desagradável aquela hora da manhã. Num banco da Av. Central chegava uma réstia de sol, tão pouco quanto a copa das árvores, ainda cheias, deixavam chegar. As sombras projetavam no arruado um rendilhado trémulo. Eu passeava, olhando, a compasso, as horas do encontro. Um homem estava gozando o calor da ponta de sol, cabeça tão baixa que parecia metida entre os joelhos, tão imóvel como um corpo inerte; se não fosse o barulho duma tosse de tabaco, julgava-o mais um daqueles que curam a ressaca duma qualquer droga. Parei diante dele tapando-lhe a réstia do sol. Se fosse outro teria repetido o que Diógenes disse a Alexandre, o Grande: “não me tires o que não me podes dar”. Desviou a melena dum rosto enrugado precocemente e estendeu-me uma mão pedinte. Sem palavras, rogos ou choradinhos ensaiados na sala da espera da miséria, meteu a moeda ao bolso e voltou a dobrar-se sobre as pernas andrajosas. Não lhe perguntei nada, não tinha poder em mim para o consolar; a moeda que lhe dei ficou-me a magoar como desculpa ou maneira de apagar a minha quota-parte desta miséria. Pensei que era como aqueles que pensam comprar o céu às prestações com a moeda que deitam na ranhura dos santos. Eu estava bem agasalhado e tinha frio. Como o sentiria aquele pobre sem abrigo, penso eu, que tinha como aquecedor aquele bocado de sol? Réstia de sol ou réstia de vida, ou as duas coisas formando uma miséria total e profunda? A minha esmola era uma bofetada dada em mim que infelizmente se repercute em eco de vergonha por toda a sociedade. Eu não aceito que se diga, “pobres sempre os tereis”. Para aquele desprotegido, aquela réstia de sol era a sua lareira, o seu cobertor. Mas, quando a noite se impõe com uma insensibilidade, aquele homem, quando via toda a gente recolher ao seu lar onde brilhava a luz e onde havia aconchego bastante para todos, que sentiria ele? Talvez se sentisse um rejeitado; tinha de dormir num vão da entrada, coberto por um papelão que apanhou no refugo de um supermercado! Os olhos daquela vida, pregados no chão porque já não havia dignidade para os levantar, como se sentiria aquele desafortunado, principalmente nesta época, onde brilha a iluminação nas ruas e as pessoas passam apressadas para os seus destinos de Natal? Mas, perguntava-me na busca duma razão que me amenizasse esta vergonha: será que a culpa desta miséria também não é feita por este homem? Será que ele não deu um grande empurrão para o precipício em que se pendura a custo, para não cair? Já teve família e perdeu-a? Por que razão a perdeu? Sinceramente, acho que era eu a tentar cavar um buraco maior para ele e, para mim, lugar estreito onde não coubesse? Eu saí dali a moer e a remoer hipóteses de solução para este homem e seus pares. Mas a minha neta veio abraçar-me numa alegria de primavera que se apressa e eu deixei no banco da avenida aquele homem que gozava aquela réstia de sol como quem goza uma réstia de vida; confesso, de tudo o que me feriu a alma, ficou apenas uma nódoa negra da pancada; juntou-se-lhe um suspiro de mágoa como choro de carpideira.
Autor: Paulo Fafe