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“Restaurar a alma da América”

1. Uns Estados Unidos (des)unidos, demasiado fracturados mercê dum errático e tonitruante consulado de Donald Trump, este simultaneamente impetuoso e superficial, governando parte da América e vilipendiando a outra parte, careciam duma reviravolta política “para restaurar a alma da América”, “reconstruir a espinha dorsal do país – a classe média”, pois é "este o tempo de sarar a América" – disse Joe Biden no seu excelente discurso de vitória. Um 2.º mandato de Trump viria a minar os alicerces da democracia americana, já fragilizados por tanto desrespeito pelas instituições e ostentação dum gigantesco ego do multimilionário presidente.

Teríamos que expressar o nosso júbilo, pois cedo escrevemos pelo menos 3 artigos neste jornal, “Populismo pavoroso e temeroso” (13/11/2016), a que se seguiram mais dois (29/01/2017 e 2/09/2017); aí dizíamos que Trump era "um dos mais impreparados candidatos a cargo de tamanha responsabilidade para os Estados Unidos e para o mundo", "um dos mais dantescos populistas do momento", que iria governar para o interesse ‘dum público’ e não para o ‘interesse público’. Se muitos confiavam na robustez dos tão invocados ‘checks and balances’ do sistema americano, eu tenho dúvidas que as decisões atrabiliárias do narcisista Trump não fizessem paulatinamente resvalar a democracia americana para uma autocracia estadunidense –, apetite que ele aliás não disfarçava.

2. Como era expectável, até ao momento em que escrevo, o presidente eleito Joe Biden não recebeu ainda o protocolar telefonema do seu rival Donald Trump a reconhecer a vitória, que, ao invés, promete acesa guerrilha judicial após a picrocola conduta de pedir o fim de contagem de votos onde ganhava e o seu prosseguimento onde perdia… Se isso é má-educação, é ainda infringir um ritual democrático necessário e que abre o caminho a um período de transição – o da passagem do poder na maior potência mundial (dossiers urgentes ou pendentes da governação).

Trata-se duma grande vitória de Joe Biden, eleito aos 77 anos, com uma carreira política impoluta e dedicada há mais de 45 anos, que prometeu "não dividir, mas unificar" a nação, que "não vê estados vermelhos ou azuis, mas os Estados Unidos", que irá "governar para todos os americanos". Na campanha eleitoral, era já patente como seria uma presidência de Joe, cultivando a democracia, no incremento do diálogo e buscando consensos – um clássico nos modos de governação civilizada. Por seu turno, Donald, imprevisível e caótico, mostrou à saciedade o que seriam mais quatro anos de poder, pois chegou ao ponto de incitar à violência: não foi o poder que transformou Trump, foi este que o transformou a seu bel-prazer e em proveito de partidários incondicionais.

3. Joe Biden, o 46.º Presidente do Estados Unidos, é também o 15.º a ser Chefe de Estado depois de ter sido ‘vice’, numa das eleições mais concorridas de sempre nos Estados Unidos; se era comum dizer que dificilmente um em cada dois americanos colocava o seu voto na urna, desta vez esteve-se mais perto dos dois terços – um evento extraordinário!

Além disso, “despediu” da Casa Branca o presidente cessante – o que não é de somenos –, pois a reeleição é habitual nos EUA; desde a II Guerra Mundial, apenas dois presidentes não foram reeleitos – Jimmy Carter (1980) e George H. W. Bush (1992); poderá até tentar novamente a sorte em 2024 – intento já aventado –, e se vencesse, entraria num clube restrito de presidentes com dois mandatos não consecutivos, o que só ocorreu com o democrata Grover Cleveland, eleito em 1884 e depois em 1892. A essa hipótese, Mery Trump, a sobrinha desavinda, ri-se, apenas dizendo: "sinto muito, acho sinceramente que ele cobrirá o rosto, pois é absurdo que faça campanha a partir da prisão". A Trump mais não restará então que proclamar-se ‘presidente vitalício’, mas isso somente no ‘facebook’ e ‘twiter’, meio a que habitualmente recorria na presidência, tal como geria os seus casinos, ora distribuindo benesses com generosidade a alguns, ora dando pouca atenção às regras do governo.

4. Todavia, se o Presidente eleito o foi pelo maior n.º de votos da história dos Estados Unidos (75 milhões), o Presidente cessante teve também uma votação surpreendente (71 milhões, mais 9 milhões que em 2016). Este é um facto indesmentível, que põe termo a teorias que vêm de há 4 anos, de que a eleição de Trump (2016) foi um acidente, que fora eleito por pouco nalguns estados do Midwest e na Pensilvânia, que devia a sua vitória ao arcaísmo do Colégio Eleitoral, quando na verdade teve eco em grupos de trabalhadores brancos, latinos e até mesmo afro-americanos, no fundo os “deserdados da globalização”. Um dos editoriais da Time resumia subtilmente: "mesmo que Joe Biden ganhe, ele governará na América de Trump". Ora, a tais sectores populacionais importa prestar a maior atenção – nos EUA e na Europa –, se se quiser evitar mais ‘Trumps’ e vencer o populismo, problema momentoso a que voltaremos.

O autor não segue o denominado “acordo ortográfico”


Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
DM

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12 novembro 2020