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Reforma Luterana (3)

1. Nos dois artigos anteriores, vimos que Lutero perfilhava uma concepção tão rígida e punitiva da autoridade, que, aos camponeses, que aguardavam o seu apoio, incita à repressão, que veio a ensanguentar a Alemanha. A posição contra as classes sublevadas granjeava-lhe, sem dúvida, as simpatias dos príncipes e proprietários, como no panfleto contra os camponeses: "Se o camponês estiver em rebelião aberta, encontrar-se-á, então, fora da lei de Deus, porque a rebelião não é um mero assassínio, é antes como um grande incêndio que ataca e devasta uma terra inteira. Portanto, deixem de pilhar, assassinar e apunhalar, secreta ou abertamente, mas lembrem-se de que nada pode ser mais venenoso, daninho ou demoníaco, do que um rebelde" (cf. citação in H. Kamen, O Amanhecer da Tolerância, p. 37).

Lutero, não querendo misturar religião e protesto social, recebeu a seguinte resposta de Tomás Müntzer – teólogo, seu amigo e colaborador, que viria a perecer na derrota dos camponeses, esmagados na batalha de Frankenhausen (mais de cem mil vítimas): "Então não vê que a usura e as taxas impedem que se tenha acesso à fé? Ela afirma que a palavra de Deus é suficiente. Então não vê que os homens que consomem todos os momentos da sua vida na luta pela sobrevivência não têm tempo para aprender a ler a palavra de Deus? Os príncipes sangram o povo por meio da usura (...). Ah!, ele afirma que não deve haver revolta porque a espada foi entregue por Deus ao governante. Mas o poder da espada pertence a toda a comunidade" (cf. ib., p. 34). Nesta posição de Müntzer, contra Lutero, sobretudo na última proposição, prefigura já uma profunda teologia política da soberania popular.

2. Lutero não abordava directamente os problemas políticos; se a obra de Maquiavel é essencialmente política, se os escritos de Erasmo ou de Moro (através do discurso utópico) debatem problemas políticos, Lutero defende posições que decorrem da sua concepção teológica. Em Da Autoridade Temporal e dos Limites da Obediência que Lhe é devida (1523), distingue “dois reinos” – temporal e espiritual – relativos a dois planos diferentes do homem: o primeiro relativo ao corpo, o segundo à alma. Não há limitação da autoridade do Príncipe do ponto de vista do corpo: este está submetido ao poder temporal. O cristão vive na terra uma vida mundana: está portanto vinculado às suas leis; mas a desobediência é puramente “nominal”: não interfere na vida terrestre, pois é somente no seu foro íntimo que o cristão pode desobedecer; se o cristão procura o reino de Deus, suporta a cidade terrestre, dominada pela obediência: "A autoridade temporal foi instituída por Deus para castigar os maus e proteger os bons". A desobediência, então, não se exprime politicamente, isto é, pelo corpo; ela produz-se, silenciosamente, na interioridade da alma: "alma rebelde em corpo submetido". Se é a palavra que governa os cristãos, é o gládio que governa os homens; de facto, "a política torna-se para Lutero, um estado de guerra. Neste sentido, não há em Lutero nenhuma revolução em política, mas a restauração duma tradição para a qual pensar a política é teorizar a repressão" (G. Mairet). Lutero, reformador no plano religioso, é conservador no plano político e económico. Condenando a submissão, pugnando pela liberdade, veio a cair em novas formas de subjugação.

3. Do que ficou dito, decorre que a sua obra, passados cinco séculos, continua a suscitar controvérsia, quer entre os crentes quer nos cidadãos dos nossos dias. Uma vasta gama de problemas e diferendos, gerados pelas circunstâncias do tempo, continuam hoje ainda a ser objecto de discussão, embora as comemorações do “Ano de Lutero” (2017) silenciem os aspectos negativos da reforma luterana; mas esta continua a afectar, com a cisão violenta e definitiva da unidade religiosa do Ocidente, os povos e as instituições, portanto, não só o cristianismo, como a sociedade, a política e a cultura da velha Europa e de todo o Ocidente.

4. Hoje, o diálogo católico-luterano é um dos mais perseverantes e profícuos. Desde o documento sobre o Ecumenismo (II Concílio do Vaticano, 1964), onde se afirma que "há uma legítima pluralidade na expressão da verdade cristã", à Encíclica Ut Unum Sint (1995), onde João Paulo II afirma que "a Igreja deve respirar com os seus dois pulmões", à Declaração Conjunta Católico-Luterana Sobre a Justificação, de 31 de Outubro de 1999 (dia e mês em que Lutero expôs as suas 95 teses, em 1517), contribuindo para o estreitamento do diálogo inter-religioso no seio do Cristianismo, como ainda à participação do Papa Francisco, na Catedral Luterana de Lund (31 de Outubro 2016), na Declaração Conjunta Católica-Luterana; nesta, afirma-se: "Graças ao diálogo e testemunho compartilhado, já não somos desconhecidos; antes, aprendemos que aquilo que nos une é maior que aquilo que nos separa". Em 50 anos, fez-se avançar mais a causa da unidade, que nos últimos cinco séculos.

O autor não escreve segundo o denominado acordo ortográfico.


Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
DM

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3 janeiro 2018