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Reforma Luterana (2)

1. Iniciámos o artigo anterior, recordando o gesto de Lutero, a afixar as 95 teses, na véspera de Todos os Santos de 1517 – há 500 anos –, nas portas da Igreja de Vitemberga – gesto porventura mais lendário que histórico; todavia, histórica é a revolta contra a venda de indulgências, das quais se transcreve a 43.ª tese: "Deve ensinar-se aos cristãos que age melhor quem dá esmola aos pobres que quem compra indulgências"; é difícil não concordar com Lutero.

No entanto, essa questão estendeu-se a outros assuntos, como o mostra a tese 1.ª: "Ao dizer: ‘Fazei penitência’, etc. (Mt 4.17), o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência"; neste ponto, é difícil concordar com Lutero.

Quem pretendia um debate sobre tantos assuntos, primeiro no âmbito da universidade onde leccionava, viu o debate estender-se a toda a Europa, pois os media de então – a imprensa recentemente inventada (1450), que permitiu também a difusão da Bíblia traduzida por Lutero – levaram longe essas ideias reformadoras, que provocaram controvérsia e escândalo na opinião pública da época, tornando política uma questão que era eclesial, naquele que foi um dos primeiros sinais dos tempos modernos, que originou também o fim da unidade religiosa do Ocidente – um dos eventos cuja repercussão histórica é hoje ainda enorme.

2. Um século antes, ideias como as de Lutero foram defendidas por Jan Hus (1369-1415), que também pregou que era a Bíblia a autoridade máxima e o modelo da vida cristã – contrapondo-se à hierarquia eclesiástica –, ao mesmo tempo que propunha a comunhão do pão e do vinho a todos os fieis, lutando contra a venda de indulgências e por uma Igreja pobre (em contraste com a riqueza e ostentação de então);

ademais, a luta de Hus em prol da justiça social conflituava com a exploração e miséria dos camponeses da Boémia, a tal ponto que a agitação estendeu-se a todas as camadas sociais – os seus seguidores eram os hussitas – e Hus foi condenado à fogueira, podendo-se hoje ver a sua estátua na praça central de Praga.

Por sua vez, Hus fora estudioso das doutrinas de John Wycliff (1328-1384), teólogo e reformador, professor da Universidade de Oxford, precursor das reformas religiosas dos séculos XV e XVI, que trabalhou também na primeira tradução da Bíblia para inglês (conhecida como a Bíblia de Wycliffe).

3. A extensa obra de Lutero assenta numa visão pessimista da natureza humana (vista como corrompida pelo pecado original): se na terra não pode realizar-se a “Cidade de Deus”, e se um povo de santos não precisaria de autoridade, esta torna-se inevitável num mundo de corrupção.

Neste ponto, o seu pensamento, embora com fundamentação diversa, recorda o de Maquiavel: é o estado de corrupção que justifica o poder. Ora, se um povo de eleitos saberia viver em anarquia (isto é, sem autoridade), a sociedade, sem ela, é impensável.

Lutero considerava a autoridade mais como repressão que como o governo justo; o termo preferido não é Estado, mas gládio: o Príncipe aparece como o executor da vingança divina contra o estado de pecado. Se Lutero combate a visão medieval preponderante, aí incluindo o tomismo, acaba por propor a obediência passiva.

A existência do Estado, ou do Príncipe, era defendida, por muitos, como uma necessidade natural, onde a coerção era elemento secundário; a esta Lutero conferia a primazia: por isso, à imagem dos “dois gládios”, prefere a imagem do “gládio único”.

É verdade que o ideal dos reformadores do Renascimento convergia para a defesa da liberdade; porém, as circunstâncias levaram Lutero para opções que negavam algumas das suas teses iniciais.

G. Lagarde e P. Mesnard salientam que aquilo que Lutero combate é um poder espiritual organizado segundo o modelo do temporal. Deslumbrava-o a sublimação do poder religioso, apoiado em passagens blicas, tais como: "O meu Reino não é deste mundo".

Todavia, uma atitude quietista perante o poder terreno vai ganhando contornos: o que a religião vai ganhando em espiritualidade, vai o Príncipe ganhando em poder.

4. Na obra de Lutero, não há propriamente uma concepção de Estado; é a autoridade o valor político primordial, vista sobretudo pelo lado coercivo. Ele, que começou com um ideal reformador, acabou por defender um nacionalismo germânico. O seu Discurso à Nobreza Cristã Alemã (1520) marca um passo nessa sua concepção.

Se antes contestava uma Igreja enredada nas preocupações temporais e terrenas, acaba por organizar uma Igreja novamente cativa. Em troca das benesses recebidas do braço secular, que lhe permitiam fazer frente ao papado e propagar a sua doutrina, Lutero cobre, com a sua autoridade religiosa, a secularização dos bens da Igreja Católica, em benefício desses príncipes alemães.

Trata-se de uma nova versão das relações entre Igreja e Estado: desfazendo esse dualismo, pugnando por uma Igreja livre, acabou por legar Igrejas de Estados, dominadas por forças políticas. O autor não escreve segundo o denominado acordo ortográfico.


Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
DM

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30 dezembro 2017