Nestes dias complicados da quarentena, a vida em família é mais íntima – obrigatoriamente – e também os contrastes e as formas de ser de cada um dos seus membros se faz notar com mais facilidade.
Foi o que eu depreendi dum "e-mail" que recebi dum velho amigo, que com a sua mulher e os seus cinco filhos, numa casa de campo herdada dos ascendentes, estão "prisioneiros" da pandemia, sem que nenhum dos "refugiados", pelo menos até agora, tenha sido tocado pelo pernicioso vírus que a China exportou para todo o mundo. É deste mail que retirei – porque era longo e muito pormenorizado – alguns excertos mais significativos.
"Tanto quanto é possível nestas circunstâncias, tudo tem corrido bem. Com certeza que andamos todos um pouco mais susceptíveis, desde o mais pequerrucho, com os seus seis anos, ao mais velho, um adolescente em plena "crise"; fez dezasseis há pouco tempo, rabugento e muito pouco penetrável. Mas, enfim, consegui só zangar-me com ele por duas vezes, porque isto de ser pai, por vezes, tem os seus quês de exigência. A minha mulher concordou e, tanto quanto me parece, com o seu jeitinho maternal, sem me confidenciar coisa alguma, deve ter-lhe dito qualquer coisa, porque o rapazote, desde aí, tem melhorado bastante. Anda mais afável e delicado.
A sua colega de crise etária, de nome Mariana, ajuda a mãe na cozinha e nas outras coisas como eu nunca suporia de que fosse capaz. Resmungona como sempre, um dia mostrou-se pouco disposta a rezar o terço em família. Fiquei triste e engoli sem grande disfarce a sua rejeição. Mas isto de ter uma mulher de primeira ordem, ensinou-me a ser mais paciente. Antes da hora da reza, estando todos na mesma sala, fez-lhe um elogio que me deixou surpreendido. Olhando-me com ar de cumplicidade, sem sequer ser preciso piscar-me o olho, disse-me: "Hoje comeste um "bacalhau com natas" como há muito não te via com tanto apetite. Já deste os parabéns à Mariana?" Fiquei então a saber dos primores culinários da minha filha mais velha. Com um beijo lhe paguei a sua arte. Ela sorriu. Depois, tudo parecia ter acabado ali. Mas a mãe, com o seu engenho feminino, avançou, imparável: "Mariana, tu que cozinhas tão bem, mereces hoje dirigir o terço, para provares ao teu pai que, aí, és ainda melhor". A rapariga ia protestar, conforme os seus hábitos. Mas o mais pequenito, sem que ninguém o pudesse parar, exclamou: "Mariana, tens que falar bem alto, para que todos te oiçam. Vê lá o que fazes..." A irmã sentiu-se atingida. E, baixinho, como costuma, balbuciou: "Está bem, mãe. Eu dirijo o terço..."
Ontem, ao jantar, houve um certo frenesim. Com algum adiantamento, comprei no supermercado da vila mais próxima, um farto pacote de amêndoas desta quadra do ano. Sem consultar a mãe, quis fazer uma surpresa e, à sobremesa, íamos todos comer apenas frutas do quintal, espalhei pela mesa as "minhas" amêndoas. O mais pequenito, esfregando as mãos, não se conteve e gritou: "Ó pai, és um gajo porreiro!" A mãe, fingindo-se indignada, ralhou: "Isso não se diz! Faz favor de tratar com respeito o teu pai!" O miúdo ficou muito surpreendido. E desculpou-se: "Mas foi o João (o adolescente que te referi) que me ensinou, quando eu meti a pomba na sala de jantar. Ela voou até à prateleira e atirou com uma jarra ao chão, que se partiu..." E completou: "Foi aí que o João me ensinou. Disse-me: Estás a ver como o pai é um gajo porreiro, que só te obrigou a colar com ele os cacos da jarra e não te deu uma coça..."
Como vês, cá vamos andando. Tenho podido trabalhar através da "internet". Mas, como calculas, só espero que esta quarentena acabe o mais depressa possível. Outra coisa não podias esperar de quem mereceu o elogio com que o meu filho mais novo me presenteou".
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva