Há poucas semanas, foi noticiado que o Censos de 2021 pode vir a incluir perguntas sobre a “origem étnico-racial” da população portuguesa. O grupo de peritos constituído para aconselhar o governo ter-se-ia mostrado maioritariamente favorável à inclusão de questões desta natureza com o objetivo de conhecer a extensão do tratamento desigual dispensado a minorias determinadas pelas ideias de raça ou de pertença étnica e, em posse dessa informação, permitir desenhar políticas públicas destinadas a uma mais plena inclusão dessas minorias.
Há que dizer que incluir perguntas desta natureza no Censos 2021 constitui uma escolha político-ideológica, sendo poucos os países que o fazem. Até por isso, esta constitui uma iniciativa cientificamente arriscada, tecnicamente complexa e, sobretudo, socialmente melindrosa. Se dúvidas houvesse a este respeito, bastaria ler os artigos escritos por jornalistas de órgãos de meios de comunicação social de referência e logo nos apercebemos da confusão terminológica e, mais ainda, semântica, que estes estabelecem entre noções de “raça”, “etnia” e “cultura”. Se é assim entre gente esclarecida, o que se poderá esperar de uma disseminação em massa de perguntas feitas por órgãos públicos, pretensamente investidos de legitimidade científica, para percebermos o impacto que esta iniciativa pode ter?
Comecemos pela sugestão do grupo de trabalho que subdivide a população portuguesa em quatro grandes subgrupos: “Branco/Português branco/De origem europeia”; “Negro/Português negro/Afro-descendente/De origem africana”; “Asiático/Português de origem asiática/De origem asiática”; e “Cigano/Português cigano/Roma”. As perguntas que nos ocorrem fazer a este pretexto são várias: porquê a escolha destes quatros subgrupos e não de outros? Que critérios científicos ou indicadores empíricos fiáveis legitimam esta escolha? O que significa “origem” nesta subdivisão: o local de nascimento (geografia), a graduação da intensidade da cor da pele ou outra opção baseada em características biológicas autoatribuídas a partir de elementos fenótipos e/ou genótipos que as pessoas, na verdade, desconhecem?
A ideia que parece presidir a esta subdivisão é de que existem “raças” humanas. No entanto, para que se possa afirmar haver “raças” diferentes no seio da mesma espécie humana, teria que verificar-se a existência de uma diferenciação genética entre pessoas com características morfológicas e/ou de cor da pele distintas (brancos, amarelos, negros…), o que os estudos sobre o genoma humano desmentem, como o constatou, já em 1992, o geneticista André Langaney. Afirmar que no interior da espécie humana existem "raças" diferentes é, portanto, cientificamente errado. Insistir nesta ideia corresponde, antes de tudo, a optar por um conceito socio-ideologicamente construído em detrimento de uma realidade científica já constatada.
Mas tudo se torna ainda mais confuso quando lemos a pergunta que precederá aquela questão no Censos: “Portugal é hoje uma sociedade com pessoas de diversas origens. Queremos melhorar a informação sobre essa diversidade para melhor conhecer a discriminação e desigualdades na sociedade portuguesa. Qual ou quais das seguintes opções considera que melhor descreve(m) a sua pertença e/ou origem?” Misturar, na mesma frase, “pertença” e “origem” constitui um dos mais elementares erros conceptuais e epistemológicos em que se confunde e correlaciona cultura (pertença) com geografia e/ou biologia (origem). Esta associação é deveras perigosa, como a História confirma. Perguntamos: pode-se ser “Branco/Português branco/De origem europeia” e sentir-se a pertencer a uma etnia (grupo cultural) não europeia? Claro que sim. Assim como o seu contrário: pode-se ser “Negro/Português negro/Afro-descendente/De origem africana” e sentir-se pertencer a uma etnia não africana. Por essa razão, hoje em dia, a etnologia prefere o conceito de “etnia” ao conceito de “raça”. E, mesmo existindo diferenças culturais que permitem circunscrever certas etnias no interior de uma sociedade, os conceitos de “nação” assim como de “comunidade religiosa” já há muito que prescindiram quer da “raça” quer da “etnia” e encontraram outros elementos comuns agregadores do sentido de pertença dos seus membros. É forçoso concluir que é no interior de uma determinada cultura que a cor da pele e a origem social ganham significados distintos e valorações positivas ou negativas, não na biologia ou na geografia. Ora, a construção do racismo consiste exatamente na inversão da ideia de atribuir as diferenças culturais de uma etnia a causas ditas “naturais” dos seus membros, sejam elas físicas ou biológicas.
Sou da opinião que as perguntas propostas pelo grupo de peritos devem ser evitadas no Censos. Por um lado, porque entendo que a utilização de quadros de referência, conceptual e cientificamente obsoletos e, portanto, inadequados de “raça” e de “etnia” deixa a porta aberta a todos os equívocos. Enxertada numa longa tradição de trabalhos realizados por etnólogos e culturalistas americanos, o recurso sistemático a uma definição estática de cultura - como aquela que é veiculada com as referidas perguntas e à qual, não raras vezes, se lhe junta a noção errada de raça - levou ao uso polémico e ideológico das noções de identidade e de cultura. Nenhum sujeito é representante ‘puro’ de uma cultura de ‘origem’ − ambas são um mito. Não existem culturas nem raças ‘puras’, existem pessoas portadores de culturas diversas, mestiçagem cultural, portanto.
Por outro lado, o que constitui uma justa pretensão sociológica – distinguir os discriminados para os incluir – depressa se transformará, por excesso de exposição de determinadas características desse grupo de pessoas, numa oportunidade para as categorizar e as estigmatizar ainda mais. Já não olharemos para a singular dignidade de cada pessoa, mas com preconceito para a sua pretensa distinção física indexando-as a determinadas etnias. Garantindo, assim, a sua visibilidade, constrói-se-lhe, psico-socio e culturalmente, uma identidade que a tornará rapidamente num objeto – e não sujeito - da causa ideologicamente erigida contra a discriminação. O resultado pretendido poderá redundar, portanto, no oposto ao desejado.
Autor: José Luís Gonçalves