Com energia e determinação, encontrou-se comigo um homem relativamente jovem, no meio duma rua por onde transito habitualmente. Ao ver-me, interpelou-me. “O senhor é padre católico?”. Respondi-lhe afirmativamente.
Fitou-me de forma algo arrogante, manifestando um ar de superioridade e de desprezo.
“Sabe, explicou, eu sou, apesar de tudo, uma pessoa compreensiva. E sinto pena daquelas que podiam fazer mais pela vida e se embiocam em beatices dentro duma igreja, com missas e mais missas, terços e mais terços, esquecendo-se do essencial.”
Continuou a olhar-me com um certo semblante de catedrático universal dos outros, indiscutível naquilo que diz, naquilo que pensa e também naquilo que ensina ou julga dever ensinar.
Surpreendido, perguntei: “O que deseja de mim?”
Prontamente, disse: “O senhor, que anda vestido de padre, dedique-se ao essencial.”
“Bem, mas o que entende por essencial?”
“Muito simples. Pensar nos outros e nas suas necessidades…. E, já agora: Perder a mania de que há mensagens divinas – ou lá o que é –, que exigem comportamentos indiscutíveis e causam, entre muitas outras coisas, tribunais como os da Inquisição, com as suas torturas e fogueiras públicas onde assavam os condenados...”
Tentei, com paz e serenidade, fazer-lhe ver que não é possível julgar acontecimentos do passado com ideias do nosso tempo, pois corre-se o risco de não entender os factos e de explicá-los de modo arbitrário, reconhecendo, muito embora, que a questão da Inquisição levanta muitos problemas interpretativos difíceis e espinhosos.
“Veja que vergonha! O pobre do Miguel de Servet, médico insigne, que tantos passos deu para explicar a circulação sanguínea, condenado à morte por “assamento” na Inquisição. O senhor, como padre, não sente vergonha de ser um “leader” da Igreja Católica?”
Lembrei-lhe que Servet tinha sido condenado à fogueira por Calvino e seus partidários, mas não pela Inquisição Católica.
“Vai dar tudo ao mesmo, mais coisa ou menos coisa...”
Interrompi-o: “Se assim é, desejo-lhe muito boa tarde e, da minha parte, a conversa terminou...”
Explodiu: “À falta de argumentos, despede-se! Só quero contra-lhe uma coisa, antes de se ir embora.”
“Conte, conte...”, disse-lhe eu.
«Há dias, eu e uns amigos – éramos dez, se não me engano –, fomos jantar num restaurante. No final, propus: “Façamos uma colecta para os desamparados”. Rendeu quase 200 euros e entregámo-los a um homem e a uma mulher que dormiam, cada um no seu lado, nos recantos de um prédio de andares... Caro Padre: pense nos outros e menos cerimonial nas igrejas... Isto é o que interessa!”
Perguntei-lhe se tinha consciência da quantidade de centros paroquiais, de instituições amparadas ou iniciadas e mantidas pela Igreja Católica, de ordens religiosas, de pessoas singulares, etc., que se dedicavam a promover a vivência da caridade com total generosidade, se sabia que, com frequência, se realizavam peditórios nas igrejas para granjear fundos, a fim de socorrer gente necessitada, que na maioria das paróquias se distribuíam géneros alimentícios, remédios, roupas... Que tudo isto, afinal, era uma consequência de os católicos pensarem seriamente nos outros.
Não me deixou continuar. “Isso é muito romântico, mas faça o que lhe digo: menos cerimónias e pensar mais nos outros”. E entrou no seu carrão soberbo, de matrícula de há poucos meses, afastando-se velozmente e sem me dar possibilidade de continuar as minhas explicações.
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva