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Ponto por ponto

É assim que o país vive neste momento: triste e assustado. Ansioso e desconcertado. Confinado a um espaço exíguo, intra-muros, com psicoses que se arregimentam em almas doridas, frágeis e frustradas pela impotência de nada se poder fazer para libertar estas rotinas incomodativas. É preciso reinventá-las, de modo a tornar a clausura familiar em algo menos sofredor. Rotinas castradoras impostas pelo vírus chinês que não dá tréguas nesta batalha desigual.Tudo se integra numa conjugação perfeita de um viver irreal. Sim, irreal. Demasiadamente irreal, cujos cenários incompreensíveis se materializam em vidas irreais, sonâmbulas, resignadas e só possíveis de observar em filmes de ficção científica, de ensaios saramaguianos ou em mentes lunáticas que vislumbram horizontes fantasmagóricos para além das fronteiras do imaginário, do terror e da perversidade. Ponto um - Refugiados em casa, limitamo-nos a ver os dias a passar num ritmo assustador. Dia após dia e nada acontece para alterar este estado de coisas. Nem as notícias vindas dos mensageiros do costume chegam para aliviar o stress que inunda os lares. Pelo contrário. Contribuem para azedar a negra realidade com números e mais números. Com rondas por outras paragens para nos fazer, talvez, acreditar que os outros estão ainda em piores lençóis. Começa a ser insuportável aguentar esta carga de clausura forçada, em que as caminhadas se fazem entre a sala e a varanda e da varanda para a sala. Um vai-vem cansativo e incomodativo. E para enganar o tempo, faz-se de conta que o tempo se enrola num novelo de vãs esperanças que se vão fiando em fios fiocos e que rebentam ao mínimo estrebuchar. E a vida, a nossa vida, continua cada vez mais apertada por imperativos de segurança, de respeito pela vida dos outros e até por uma questão de liberdade de escolha e de comportamentos. É necessário o bom cumprimento destas recomendações, não se impusesse o país a viver em Estado de Emergência para degolar o mafarrico. É verdade que tudo isto custa e dói. Uma dor que se reflecte no distanciamento de toques, de afectos, de alma. Só os olhos entram neste jogo malvado. Ponto dois - A todo o momento, ouve-se em todos os canais televisivos e em toda a parte, “fique em casa” como medida profiláctica para se evitarem novos contágios. Debita o governo, entontecido pelos acontecimentos e impotente perante o gigantismo do problema sanitário provocado por essa peste chinesa, medidas e mais medidas, sempre com o objectivo claro de quebrar a cadeia transmissora da peçonha. Todos os dias, notícias amargas passam monótonas, pesarosas, brutais, contando números, só números, não gente, que nos abisma e nos incomoda. E vem a notícia, timbrada de imagens insalubres, secas, e dizem-nos com aspereza e irracionalidade: mais uns tantos que se foram. E sem se proceder às devidas e sentidas exéquias prestadas por familiares e amigos. Neste ou naquele lar de idosos o vírus “trabalha” que se farta, não respeitando os cabelos brancos, as memórias e as fragilidades dos seus convidados. São estes, de facto, as principais vítimas deste “micróbio” medonho. Outros aguardam nos cuidados intensivos, entretanto, a vez para partir. Tudo isto num ritmo sempre implacável e assustador. Ponto três - Começo a estar farto de notícias fastidiosas que não quero ouvir e receber. Ouvir para quê? Receber para quê? Interrogo-me constantemente à procura de uma resposta óbvia e esclarecedora. Verdadeira e substancial. Discute-se a existência ou não de luvas, de máscaras, de batas, de ventiladores. Ninguém sabe se este material sanitária existe ou não existe. Convém ficar nas meias-tintas. Num jogo de sombras. Talvez de propósito. Há muita informação e mais desinformação. No meio do turbilhão, surge naturalmente a confusão noticiosa que me confunde, como se a vida e a morte não merecessem outro respeito, outra dignidade e uma outra verdade. A verdade linear. Natural. Prefiro, por isso, refugiar-me noutras alternativas e inteirar-me no estritamente necessário para não fazer o papel de ignorante esclarecido. Enfim, é assim que o país vive: atónito e preocupado. E a contar os que vão partindo.
Autor: Armindo Oliveira
DM

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12 abril 2020