1. O recente e lamentável episódio, já conhecido por “sofagate”, é uma ilustrativa sinédoque de uma União Europeia um tanto à deriva, que, no dealbar da 2.ª década do século XXI, deveria apresentar-se forte e coesa, dotada de diplomacia competente, entre grandes potências que emergem (China e Índia), outras se fortalecem (Rússia) ou simplesmente se consolidam (EUA, vigorosamente com Biden).
O “Sofagate”, incidente diplomático de 6 de Abril, deu-se quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, ambos em visita oficial à Turquia, na reunião com o presidente, Recep Tayyip Erdogan, os homens se sentaram, lestos, nas duas cadeiras douradas do salão, deixando Ursula de pé, isolada e confusa, que deixou escapar um “ehm?!” de perplexidade. Como ambos se recostaram ainda mais, ela teve de sentar-se num sofá lateral, ao mesmo nível do ministro dos negócios estrangeiros turco: três homens sentados, uma mulher de pé, cena nada perturbadora para esses machos; lapso certamente não foi, e quem o premeditou, jogando com as ambiguidades do protocolo europeu, imaginava já a humilhação pública, num contexto de abandono, há 2 meses, por parte da Turquia, da Convenção de Istambul (combate à violência contra as mulheres), adoptada há 10 anos.
2. No “Dia de Europa 2021”, se nos indigna a prepotência de Erdogan, mais ainda o estado a que a UE chegou: basta de amabilidades quando não há respeito recíproco! Sem entrar nos meandros da questão protocolar, a verdade é que as versões das equipas dos dirigentes europeus e da diplomacia turca foram esfarrapadas e contraditórias; e, há anos, em encontro similar entre Erdogan, Donald Tusk (predecessor de Charles) e Jean-Claude Juncker (antecessor de Ursula), este teve direito a uma cadeira igual e ao mesmo nível protocolar que os outros dois líderes.
Ressurge uma velha questão: “a quem telefonar, para falar com Europa?”, indagava malevolamente Henry Kissinger (secretário de Estado de Nixon), meio século atrás. A criação, em 2009, no ‘Tratado de Lisboa’, dos cargos de Presidente permanente do Conselho, de Presidente da Comissão Europeia e do Alto Representante para as Relações Externas e a Segurança (ocupado por Josep Borrell), visava solucionar tais problemas e robustecer a política externa comum. Como é crónico, em vez de solucionar um problema com simplicidade, a UE complexifica-o, e, não o resolvendo, cria outros maiores! A rivalidade entre Charles e Ursula (e também entre o político belga e Borrell, desde que este multiplicou os périplos internacionais), não esclarecem tudo, pois subjaz a tudo isso uma poliarquia europeia, que o Tratado de Lisboa agravou.
3. E este caso recorda um outro, a 5 de Fevereiro, em que precisamente o Alto Representante europeu foi recebido de forma ostensivamente rude por Putin e Lavrov, que ousaram perfidamente expulsar três diplomatas europeus (apoiavam o opositor russo Alexei Navalny) enquanto decorriam as conversações entre Lavrov e Borrell. Como é sabido, há muito que Putin (como Xi Jinping, e antes também Trump) tudo fazem para desintegrar a UE, provocar relações tensas entre a UE e os EUA, debilitar a NATO. Evocaram-se erros da parte de Borrell, pela inoportunidade da visita, mas talvez também ele tenha sido alvo dos ardis obscuros duma estratégia formal de humilhação, orquestrada pela dupla Putin-Lavrov.
Outrossim o acordo de investimento entre a UE e a China, celebrado no final de 2020, que se arrastava há 7 anos por culpa dos chineses, e por estes apressado (obtendo vantagens, como sempre) antes de Biden tomar posse, poderá originar tensões com a Administração americana (Biden propusera à UE reatar o diálogo transatlântico sobre o “desafio estratégico colocado pela crescente assertividade internacional da China”). O tacticismo não pode prevalecer sobre tudo.
E unidade e coesão não são impossíveis: em assunto decisivo como foi o Brexit, a UE assim se apresentou, delegando em Michel Barnier as árduas negociações para proteger os interesses da UE; noutras áreas, objectivos que antes pareciam inalcançáveis tornaram-se realidade, como a política monetária, que, embora imperfeita, é já robusta. Ora, a política externa e de segurança é uma condição existencial da UE.
4. No último discurso no Parlamento Europeu, Von der Leyen – a melhor Presidente, após Delors – não deixou fugir a ocasião para um apelo aos direitos das mulheres, ao afirmar que se sentiu "magoada e sozinha" e relegada para segundo plano: "Sou a primeira mulher a presidir à Comissão Europeia. Sou a presidente da Comissão Europeia, e é assim que esperava ser tratada quando visitei a Turquia (…), pelo que tenho de concluir que isso aconteceu porque sou mulher". E prosseguiu, sublinhando que, como "presidente de uma instituição muito respeitada por todo o mundo", pode fazer-se ouvir, mas que isso não acontece com "milhões de mulheres que são magoadas todos os dias, em todos os cantos do planeta".
O autor não segue o denominado “acordo ortográfico”
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha