Passagem de quê? Numa visão minimalista trata-se apenas de um dia vulgar que se retira do calendário; para os maximalistas passa-se uma noite de contraste entre o ano velho cheio de moléstias e o ano novo cheio de estridentes alegrias; para os que estão no meio destas duas visões, é uma noite sem grande significado, tentando encontrar um equilíbrio entre o mau que já passou e o bom que há de vir, como se entre um e outro houvesse necessidade de esquecer a infelicidade e ou a felicidade. Para o cronista, para este cronista, o que representa a viragem do velho para o novo? Resiste às euforias que o champanhe e a doçaria enganam, os bailes adocicam, os confetes engodam e as músicas de salão embalam. E olha para os céus onde uma noite de fogo-de-artifício faz empalidecer as estrelas, uma noite chocarreira que faz esquecer tristezas, uma noite de uvas passas, doze como indica a meia-noite do relógio e pensa como tudo isto é um ambiente que a realidade “não deixa durar muito” ;é uma noite fugaz que se fez costume; quanto ao resto, a única certeza é de que os dias vão começar a crescer, deixando sem saudade os dias pequenos, chuvosos e taciturnos. Embora venha entrando o inverno, a primavera já sorri nas giesteiras que precocemente anunciam a chegada da estação das flores e das andorinhas. Costuma-se desejar um bom ano novo cheio de prosperidade, e o cronista pergunta, por que não alimentar em si este desejo? Faz parte do ser humano viver de esperanças e agarrar-se ao desejo de melhores dias, como lapa ao penedo que não quer ser levada pela onda alta da maré brava. A esperança, para lá do estado de espírito que a cada um pertence em dias de festanças, como as que se passam em épocas natalícias, chama-se governação. Todos dependemos dela. Esta é a realidade que não tem a cor da esperança porque é realidade. Só a governação me diz se o que tenho chega para viver com dignidade. A dignidade, na sua expressão pessoal, permite que ande de cabeça levantada, sem orgulho mas também sem humilhação; não permite que estenda a mão à esmola porque a dimensão do ser, enquanto senhor de si, não obriga ninguém a rir da anedota do patrão. Mas não é o que se percebe no novo OE. Indexar um aumento à inflação é o mesmo que condenar o pobre a continuar a ser pobre. O pobre não deixou de ser pobre porque lhe tocou mais uns míseros euros por mês. Isto não é um aumento é uma indignidade. Para humilhar chega. Mas o pobre não perdeu o poder de compra, diz o ministro das finanças. Ninguém pode perder o que não tinha, senhor ministro. Que poder de compra tem o salário mínimo e que poder ganha com os aumentos que lhe atribuiu? Que poder de compra tem o contratado a prazo, quando sabe que a poucos dias ficará sem meios de subsistência? Quem provoca sonhos que viram pesadelos, não é apenas um semeador de promessas, é um “monstro” social. Sete décimas de um cêntimo, como aumento, é, no mínimo, um cinismo orçamental que arrepia consciências. Os que têm pouco somam pouco mas os que têm muito poderiam não somar nada, para que outros somassem mais um pouco. Isto chama-se solidariedade social. Sete décimas de um cêntimo! A conclusão é esta: os aumentos a este ritmo são tão insuficientes para o nível de vida como a gota de água em boca sequiosa; a manter-se este sistema de indexação à inflação, teremos, em Portugal, uma pobreza crónica. Saúde para todos são os meus desejos sinceros para o ano 2020 que será igual ao anterior como passagem do testemunho na corrida de 365 dias.
Autor: Paulo Fafe