Sócrates suicidou-se com uma porção de cicuta, porque o sofrimento moral causado pela condenação dos Trinta Tiranos se lhe tornara insuportável, e essa dor impossibilitava-o de continuar a viver uma vida digna. Todavia, Montaigne, na linha de Cícero, disse que «filosofar é aprender a morrer», lição que implica uma práxis tolerante com a dor física e moral, e, consequentemente, com a morte natural. Esta compreensão das vicissitudes da condição humana, ajudada pela sua vocação ético-humanista, levou-o a não negar a existência de Deus; todavia, Voltaire, numa das suas quedas metafísicas, afirmou o contrário dizendo: «Deus não existe»; pedindo, muito embora, para que não contassem nada ao seu criado, com medo de que ele o matasse durante a noite.
Conscientemente ou não, Voltaire espalhou as primeiras sombras ateístas em pleno Século das Luzes (séc. XVIII), semeando contradições culturais insanáveis, ao conceder à razão o poder de negar Deus como «coisa» apreensível pelo conhecimento humano. Nietzsche (séc. XIX), depois, aproveitou este deicídio filosófico para deixar para trás o mundo transcendente e avançar mais um passo rumo ao niilismo finissecular, quando confirmou a morte de Deus: «Gott ist tot.» Com Deus morto, havia que fazer nascer o super-homem, fautor de novas ordens morais fundadas nas emergentes «religiões» do individualismo, liberalismo e transumanismo. Conforme afirma em Assim Falava Zaratustra, garante que foi o diabo que lhe transmitiu essa certeza: «Recentemente ouvi-lhe dizer estas palavras: “Deus morreu; a sua piedade pelos homens matou-o.”»
Este polémico pensador alemão – de quem o nazismo terá tirado abusivamente o gérmen da sua ideologia nacionalista e xenófoba, por causa de uma aceitação acrítica do anúncio do super-homem e de uma interpretação extrapolada do capítulo Sobre a Guerra e os Guerreiros, onde diz, entre coisas: «Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas a vitória. Que o vosso trabalho seja luta, que a vossa paz seja vitória!» – teve por mestre Schopenhauer, um filósofo também alemão que havia bebido a sua metafísica ateia no veio cético não transcendente do iluminismo europeu.
Deste hic et nunc a-religioso nasceu o existencialismo do pós-guerra, propugnado por Sartre, Camus e Heidegger, entre outros, que estabeleceram o diktat de que «o homem é um ser que caminha para a morte». Sem mais. Não admira, pois, que a ciência e a técnica contemporâneas comecem a prometer ao homem a imortalidade terrena, e não a sobrenatural, indo de encontro ao pedido de Woody Allen, que disse que desejaria viver a vida eterna em sua casa. Com esta afirmação, ainda que irónica, o ator e cineasta negou a transcendência enquanto dimensão do ser e introduziu nos mídia uma narrativa egotista de pendor depressivo, por denunciar um medo atávico da morte natural. Apesar de a morte não ser uma experiência fácil, será mais difícil se a entendermos como algo de estranho à condição humana. Em termos biológicos, o indivíduo não é eterno, é-o, porém, em termos espirituais, conforme o pensamento dominante da filosofia clássica e dos doutores da Igreja.
A propósito do atual fomento da indústria da morte, refira-se, a título de exemplo, que uma clínica da Suíça chamada Dignitas, está a ganhar rios de dinheiro com a eutanásia e o suicídio assistido. Que estranho paradoxo, transformar o ato de matar num ato digno! Pelo contrário, a dignidade está em aceitar a natureza humana como princípio e fim de si mesma, e em aceitar a vida não somente como uma experiência psicofísica, mas também como uma obrigação moral que deve ser cumprida dentro de rigorosos critérios éticos e sociais. Porém, a cultura de massa mergulha cada vez mais o homem contemporâneo num caldo hedonista, inócuo e paradisíaco, fazendo da morte uma obsessão do intelecto, da angústia metafísica uma sombra do espírito, e da depressão uma perigosa metamorfose degenerescente.
A Filosofia deve, pois, ensinar-nos a viver e a morrer; mas a viver para a morte natural, e a morrer para a vida transcendente, porque o homem não existe para desaparecer no nada. A menos que não aceitemos o pensamento de Lucrécio (séc. I a.C.): «A morte é menos temível do que o nada, se é que alguma coisa menos que nada é possível.»
Autor: Fernando Pinheiro
PARA QUE SERVE A FILOSOFIA AO HOMEM – PARA SABER VIVER OU PARA SABER MORRER?

DM
30 julho 2021