São oitocentos milhões que causam o mal-estar dentro da coligação que nos governa. Os dois da esquerda – PCP e BE – querem que o governo não seja mais troiquista que a troica; Centeno, que quer continuar a brilhar na Europa, impõe aos portugueses contenção de despesas que, no fundo, não passa de uma outra maneira de dizer austeridade com outro nome. Esta continua mas, como não piorou, até parece que melhorou. Verdade que algumas migalhas deram a ilusão de que eram bolo. O inverno depois de passar até parece que sempre houve verão. E que deve fazer o primeiro-ministro, colhido como está, entre dois fogos? Deve gastar os oitocentos milhões com os reformados, com o sistema nacional de saúde, com o aumento dos vencimentos, ou entregá-los aos nossos credores? Se paga, descontenta a esquerda, se não paga, não faz obra de mérito. Se aplicássemos a lógica caseira, deveríamos pagar o que devemos, para ficarmos a saber o que nos fica. Numa lógica de estado colocam-se duas opções muito distintas ao primeiro-ministro: ou paga e faz boa figura internacional, ou gasta-os com os portugueses. E aqui nasce a discussão. Penso a este respeito que o meio-termo seria excelente. Em vez de pagar oitocentos milhões pagar-se-ia muito menos e melhorar-se-ia a vida dos portugueses. Na verdade, foi o seu sacrifício que proporcionou estes resultados, logo, parece-me lógico que os tratássemos como acionistas com direito a reembolso. Ninguém compreenderá muito bem que se não recompensasse o seu sacrifício. Se a credibilidade de Portugal estivesse em causa, isto é, se o pagamento fosse uma obrigação contratual com os credores, se corrêssemos o perigo na recuperação económica do país, estaríamos certamente ao lado do governo. Mas não é nada disto que se trata. O que verdadeiramente se trata é de abrilhantar o desempenho do ministro das finanças português, Mário Centeno, para fins que só ele sabe e outra gente desconfia. A esquerda, que sustenta este governo, dá a ideia de perfilhar o princípio de chapa-ganha, chapa-batida. Errático. Se quiser avaliar o pensamento português, basta olhar para o aforro que os portugueses, consistentemente, conseguem fazer e daí concluírem que estão perante uma sociedade que poupa para uma eventualidade. E o estado não deve fazer o mesmo? E é esta a sociedade em que estamos inseridos, e é esta a sociedade maioritária que vota. As franjas desta sociedade não ganharão nunca umas eleições democráticas enquanto não entenderem a sociedade em que vivem. Se qualquer partido não souber estar dentro da sociedade em que vive, criar uma imagem que encaixe nessa sociedade como se fosse parte dela, será sempre um partido outsider. É um estrangeiro. Na política a perceção é tudo e, quem isto não entender, está na política a apenas porque sim. É, por exemplo, a eterna ilusão da igualdade, da abolição de classes, da sociedade do homem novo. A sociedade portuguesa não é nada disto, não é uma ideia abstrata; é uma coisa, isto é, pode ser quantificada e qualificada. Na sua identidade concreta é realisticamente social-democrata. Democrata com vista larga para o social, radicada naquela subjetividade que marca a maneira de ser e de viver de cada indivíduo e a que nenhuma ideologia igualitária dá resposta. Há sempre em cada um de nós algo que nos distingue do outro. A igualdade é uma violência e uma intrusão e abuso nesta individualidade. A ideologia igualitária faz sonhar e despertar anseios mas que se vão desvanecendo enquanto o tempo passa e, quando passa, e nada concretiza, vira utopia. Vivem de utopias os resistentes a desistentes para calar em si as frustrações do dia que nunca nasce. Oitocentos milhões lembram à esquerda que a austeridade afinal continua.
Autor: Paulo Fafe
Os oitocentos milhões

DM
23 abril 2018