1. Volto ao tema em epígrafe, somente porque um amigo me convidou a tomar café e discutir os dois artigos anteriores, o que me deixou muito satisfeito, por mais que ele discordasse do que escrevi; ao menos é alguém que me lê, e a falar é que a gente se entende! Lembro-me do poema de Pedro Diniz sobre as “Vozes dos Animais”, que decorávamos na Escola Primária, recolhido por Antero de Quental no seu Tesouro Poético da Infância (1883), cuja última estrofe (a 11ª) se inicia com estes dois versos: “A fala foi dada ao homem, / Rei dos outros animais”.
O meu amigo não discordava essencialmente do que escrevi, mas considera que o Ocidente também tem culpa na situação actual da Ucrânia, e que é excessiva a comparação de Putin com Hitler; bem vistas as coisas, é preciso atender aos contextos, e são factos ocorridos em séculos diferentes.
2. Concordei que o Ocidente não se saiu muito bem, pelas ambiguidades do passado. Convém recordar a Revolução na Praça Maidan, pró-europeia (de Novembro de 2013 até 22 de Fevereiro de 2014). Lembro-me das imagens e de ver bandeiras da UE ostentadas por manifestantes. A carnificina perpetrada entre 18 e 20 de Fevereiro, pelas forças de segurança, não evitou que a única saída para o presidente Viktor Yanukovitch (fantoche de Putin) fosse a fuga para a Rússia. Não houve nenhum povo europeu que assim tenha lutado – o povo mártir pela UE –, e só no passado 23 de Junho foi outorgado à Ucrânia (e Moldávia) o estatuto de “candidata”.
Todavia, se era a adesão da Ucrânia à NATO o grande problema, Putin sabia bem que isso estava bloqueado. Aqui o Ocidente portou-se mal: para não desagradar a Putin, a França e a Alemanha vetaram (2008) essa adesão, quando todos os outros membros eram a favor (inclusive os Estados Unidos): tivemos o insciente Sarkozy e a vacilante Merkel a ceder, obnubilando as esperanças da Ucrânia; ter-se-ia evitado esta hedionda guerra devastadora, que deixa um País arruinado por mais de um século.
E o Ocidente errou ainda mais, na sua própria sustentabilidade: confiou na Rússia, tornou-se dependente a nível energético (gás e petróleo), albergou os seus oligarcas e mafiosos, pactuou com seus interesses comerciais, aceitou investimentos de corruptos russos.
3. Acerca do paralelismo entre Putin e Hitler, persevero nas semelhanças: tal como Putin hoje, Hitler invadiu (1939) a Polónia (dizia que era apenas uma operação pontual defensiva), ou em Março de 1938, quando anuncia o ‘Anschluss’, sobre a ‘união’ entre a Alemanha e a Áustria (de facto, uma anexação), urdindo que esse país obstaculizava uma política amigável, ou quando alegou que iria proteger os sudetas (cerca de três milhões de etnia germânica) que viviam na Checoslováquia, invadindo-a em 1939 e apoderando-se das suas riquezas (66% do carvão, 70% do ferro e aço e 70% de potencial eléctrico) para aumentar o arsenal bélico nazista; e outros casos mais poderia trazer à colação! Essa a consequência da Conferência de Munique (com a complacência de Mussolini pela Itália, de Daladier pela França, de Chamberlain pela Inglaterra), que marcou de facto (a partir de 1938) a política expansionista da Alemanha, conhecida como ‘lebensraum’ (“espaço vital”); esses casos e esta linguagem das décadas de 30 e 40, ouvimo-la hoje da boca de Putin e de seus corifeus. Ademais, se Hitler jurou aos alemães que se vingaria da derrota na I Guerra, Putin jurou aos russos que se vingaria da derrota na Guerra Fria e das humilhações (reais ou imaginadas) dos anos 90.
O conceituado historiador britânico Laurence Rees, em “Hitler e Estaline: os tiranos e a Segunda Guerra Mundial” (já traduzido), faz um paralelo entre esses dois monstros do século passado, um para o outro como os dois lados da mesma moeda. Questionado agora em entrevista, sobre Putin, julga-o mais próximo dos tiranos cruéis da Rússia (Ivan o Terrível, Pedro o Grande, Estaline).
4. Vivemos no que se denomina como era pós-iluminista, onde o imprevisto pode acontecer… À nossa volta, é tudo muito mais frágil do que pensamos – pessoas, instituições, regimes! Recorde-se o ‘Brexit’, ou o caso de Trump (e quão perto os Estados Unidos estiveram de perder a democracia).
Por tudo isto levei para a conversa também o livro de Michel Eltchaninoff, “Na cabeça de Putin” (tradução publicada em Junho), onde o autor mostra como Putin passou a primeira década a cativar o Ocidente, mas depois a combatê-lo após ter montada a sua máquina de guerra. Eltchaninoff escreve, sobre o início de funções de Putin: "aos seus amigos europeus, cita Kant e sublinha o profundo europeísmo da Rússia. Mas quando vai à Ásia (…) as coisas são diferentes. Na China, por exemplo, nas suas primeiras semanas como presidente eleito, culpa o Ocidente e a sua política humanitária (…)".
Ao despedir-me, como o meu amigo estava ainda reticente, disse-lhe apenas: se o Ocidente se tivesse portado assim durante a II Guerra Mundial, provavelmente a Europa seria hoje metade nazista e metade soviética.
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha