Não é raro, embora entre os cristãos não seja tão frequente, que alguns paladinos da dignidade da natureza humana manifestem certa perplexidade sobre o sacrifício voluntário que a Igreja recomenda aos seus seguidores, nomeadamente neste período do ano que estamos a viver liturgicamente – a Quaresma.
Convém lembrar, antes do mais, que o sacrifício ou a mortificação voluntária dum cristão não é uma mania, nem uma atitude de desconfiança nas muitas traições que uma vida despreocupada e burguesa pode ocasionar. Nem apenas uma espécie de atitude de auto domínio próprio, a fim de que a nossa vontade não se transforme numa espécie de peça de museu mais ou menos esquecida e abandonada, incapaz de enfrentar uma situação difícil de superar, em virtude de exigir uma resposta adequada de esforço duro e de enfrentamento forte e objectivo.
O sentido do sacrifício voluntário dum membro da Igreja, fundamentado no exemplo de Cristo, é uma consequência do mandamento da caridade, que nos diz para amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Se eu devo amar alguém que não sou eu, com toda a força de vontade possível, certamente que a minha relação com ele deve ser de dedicação completa. Notemos, no entanto, que a Deus devo amá-Lo com mais ímpeto e ardor do que a mim mesmo, pelo que a sua vontade sempre se sobrepões à minha, quando algo se me apresenta para realizar e eu verifico que o que Deus me pede não coincide com o que me apetece ou quero. Por isso, devo submeter–me à vontade divina, quando existe disparidade entre as duas. Só deste modo O amarei sobre todas as coisas.
Também na minha convivência com o próximo, este exige naturalmente de mim, que eu o trate tão bem como se o que devo fazer fosse para o meu próprio bem. Só assim o amo como a mim mesmo. E, com frequência, a verdade é que me apetece tratá-lo de um modo menos dedicado, menos intenso ou sem a exigência devida.
Como se vê, o amor verdadeiro e recto exige sacrifício. Pensar no bem dos outros requer de mim esquecimento do meu egoísmo, que é uma espécie de doença natural que enfrentamos diariamente. O nosso eu e o nosso bem apresenta-se com facilidade como o fim das nossas acções, pondo de parte ou em lugar desvantajoso quem comigo convive. E, não esqueçamos: se muita gente passa pelas ruas da minha vida com proximidade, Deus está sempre presente em tudo o que faço, não como um tirano que nos tira a liberdade, mas como um pai amoroso e um excelente educador, que incita a minha condição de ser livre a realizar o que tenho a fazer com a perfeição devida e que me é possível. Não obriga, incita.
O sacrifício voluntário é, ao fim e ao cabo, uma consequência da minha própria condição. Como ser limitado que sou, preciso dum treino adequado para realizar o que devo, pois nem sempre é agradável, atraente ou fácil. A vida não consiste, como costuma dizer-se, num “mar de rosas”, mas numa luta constante por cumprir as nossas obrigações. Outra forma de a encarar é falsa e mentirosa. Convida ao egoísmo, à falta de sinceridade, ao ocultamento sistemático das nossas limitações e à incapacidade para encarar a realidade como é de facto. Se, voluntariamente, não nos habituamos – não nos “treinamos” – a superar os desafios que a vida nos lança, sairemos inexoravelmente derrotados.
O tempo da Quaresma anima-nos a olhar para o exemplo de Cristo, que é um constante convite a sermos voluntariamente sacrificados e não somente a seguir a via do que nos agrada. A preparação da “Vida pública”, recordemo-nos, leva- o Senhor a passar quarenta dias de penitência, ou seja, de profundas mortificação e oração; a vontade de Deus, ainda que possa não ser apetecível, é o que guia o seu comportamento. No “Jardim da Oliveiras” enfrenta o Pai, dizendo: “Pai, se é possível, afasta de Mim este cálice... Mas não se faça a minha vontade, mas a tua”.Jesus está, neste momento, ciente do que Lhe vai exigir a Paixão e morte na Cruz. Custa-Lhe muito enfrentá-las. Mas a vontade de Deus está acima da sua vontade humana e das dificuldades a enfrentar.
A pandemia actual é também uma excelente ocasião para procedermos como Cristo. Dar-nos totalmente ao nosso próximo, como Ele em relação a todos nós, e obedecer, mesmo com custo, ao que Deus nos peça. Não podemos neste tempo ingratos e doloroso fazer o que nos apetece, mas sujeitar-nos ao ambiente de limitações a que não devemos nem podemos fugir.
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva
O valor do sacrifício voluntário

DM
28 março 2020