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O trumpismo e a toxicidade digital

Depois das eleições presidenciais nos Estados Unidos da América, mas antes de se saberem os resultados finais, Maurizio Ambrosini, professor do Instituto para os Estudos de Política Internacional da Universidade de Milão, indicou no diário italiano Avvenire [1], com uma oportuna sagacidade, o derrotado. Não é a Donald Trump, nem a Joe Biden que o autor do texto se poderia expectavelmente estar a referir, mas ao “digitalismo”, que o colunista do jornal define como “essa ilusão de que as novas tecnologias digitais seriam a arma definitiva para dar às pessoas a supremacia sobre os poderosos e para criar uma era de participação cívica, de progresso e de harmonia”. O académico constata que o que se verifica é o inverso: “Apesar dos seus imensos benefícios, a Internet hoje está mais ao serviço dos poderosos do que dos utilizadores”. É verdade que “o digital domina o mundo mesmo sem Trump”, mas também é certo, que, como Maurizio Ambrosini acrescenta, “Trump não dominaria sem o digital”. Observando que, “mesmo se agora for derrotado no campo eleitoral, o trumpismo permanecerá imbatível em muitos corações”, fazendo com que os aspectos mais deletérios desta ideologia, como o racismo, por exemplo, subsistam, o autor considera muito acertadamente que o triunfo e o enraizamento do trumpismo não teriam acontecido sem as armas digitais. Explica Maurizio Ambrosini que o “sistema Trump” nos ensina que “hoje para dominar são mais necessários os dados do que os soldados” [2]. Aos que poderão objectar que o digital e a Internet estão a mudar para melhor a vida de milhões de pessoas faz-se ver que “essa não é a questão”. De facto, o problema ocorre se e quando, para além dos efeitos benéficos de certas invenções, surge um imprevisto causador de desmedidos danos maléficos. O colunista do Avvenire socorre-se de um exemplo conhecido para o demonstrar: “Descobrimos apenas agora que dezenas de milhões de toneladas de plásticos muito úteis se desintegraram em partículas invisíveis em todos os oceanos, nos peixes, nos alimentos e no nosso organismo”. Sabermos isto não ditou evidentemente que se prescindisse da química moderna que melhorou as nossas vidas. Por idêntica razão não “devemos desistir da tecnologia digital porque o trumpismo de massas é dela um filho não desejado”. O académico constata que a história da crescente regulamentação da produção química nos ensina que é possível não “deitar fora o bebé juntamente com a água do banho”. Ainda que não se tenham evitado todos os perigos químicos, cinquenta anos de actividade legislativa permitiram que se eliminassem ou se reduzissem muitos deles. Graças às investigações críticas, aos alertas sanitários, mediáticos e sociais e à consequente regulamentação estatal, foram-se reduzindo os danos a pagar pelos benefícios proporcionados pela química. “Agora deve ser feito o mesmo para o digital”. Maurizio Ambrosini assinala, contudo, alguns obstáculos para que isso suceda. O principal “é a euforia das massas pela ‘revolução digital’, ainda percebida como uma dádiva gratuita e saudável que chove sobre todos nós, sem nos interrogarmos sobre o que está por trás dessa revolução”. Outro obstáculo indicado “é a reacção extremamente lenta dos nossos anticorpos individuais e sociais”. Por um lado, “o digital dissemina-se a um ritmo desenfreado, muito mais rápido do que outras tecnologias ambivalentes do passado (por exemplo, as atómicas e as químicas)”. Por outro lado, “a explosão do mercado digital é o último recurso para salvar o dogma do crescimento económico num mundo rico onde quase todas as casas estão saturadas de todas as outras mercadorias. Portanto, ninguém ousa sequer pensar em colocar qualquer barreira à última galinha dos ovos de ouro”. O texto de Maurizio Ambrosini é mais um bem-vindo apelo a um sobressalto crítico, que dite uma reflexão útil sobre os efeitos nocivos de uma tecnologia que, ao contrário do que prometeram os “digitalistas”, não está a mudar o mundo apenas para melhor. [1] “Voto Usa e deriva di Internet.Il digitalismo perderà (ma resterà)”. Avvenire, 4 de Novembro. [2] A este propósito é particularmente recomendável a leitura do texto de Alain Frachon, editorialista do diário francês Le Monde, intitulado “Les colporteurs du trumpisme” (Le Monde. 6 de Novembro). Nele se constata que “Donald Trump governou mais com o Twitter e o Facebook do que com a elite administrativa do país”.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
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8 novembro 2020