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O silêncio dos inocentes

Nestes dias, tenho seguido a novela dos e-mails e das reiteradas acusações sobre mais um caso de alegado tráfico de influência e de corrupção. Antes de mais, apraz-me dizer o seguinte. Caso sejam devidamente comprovados comportamentos ilícitos, espero que o clube e os dirigentes envolvidos sejam castigados com toda a panóplia de sanções previstas na lei, quer se trate de multas, de penas de prisão efectiva, de perda de pontos ou de descida de divisão. Os últimos acontecimentos suscitam-me todavia uma breve reflexão.

Há muito que o futebol deixou de ser apenas um desporto. É hoje um espaço de pertença e de (re)configuração das nossas identidades, mas também uma indústria que movimenta somas colossais. Quando se juntam, paixões e negócio raramente dão bons resultados. Há muita coisa em jogo, para além do próprio jogo. Do lado dos adeptos, a competição dá azo a rivalidades absurdas. Do lado dos clubes, as transferências milionárias, os direitos de transmissão televisiva, a venda de produtos derivados, a publicidade e outras fontes de receita dependem dos resultados desportivos. Para sobressair nesta selva, tem valido (quase) tudo. Com a complacência do poder politico, dos media e dos adeptos. 

Queremos lá saber do fair play. O que interessa são os troféus. As tarjas e os cânticos ofensivos já são encarados com normalidade. Recordo-me de ver, a 5 de Maio de 2011, na Avenida Central, aquando da qualificação do SC Braga para a final da Liga Europa, pais que incentivavam filhos de tenra idade a insultarem adeptos rivais. Quando um clube é beneficiado pela arbitragem, um atleta protagoniza comportamentos menos éticos ou assomam suspeitas de corrupção, minimiza-se o acontecimento e acusa-se o rival de ter feito bem pior. Enquanto continuarmos a sacudir a água para o capote do vizinho, teremos os dirigentes e o futebol que merecemos. Quase todos berram, mas poucos parecem estar inocentes.

O jornalismo tem uma quota-parte de responsabilidade neste lamaçal. Que me perdoem os excelentes profissionais do sector, mas a subserviência dalguns é confrangedora. Não é por acaso que os clubes recrutam nas redacções os seus directores de comunicação. Não é por acaso que não temos um verdadeiro jornalismo desportivo de investigação. Não é por acaso que somos inundados com inenarráveis emissões de debate e comentadores mandatados pelos emblemas respectivos. Não é por acaso que as conferências de imprensa são uma paródia de jornalismo. Não é por acaso que muita gente diz saber muita coisa, mas ninguém conta nada. Não é por acaso que esta novela foi espoletada pelo canal de televisão do clube rival e que os e-mails podem ter sido obtidos por meio de pirataria informática.

Somos um país de brandos costumes, mas ainda distantes de uma verdadeira cultura democrática. Ainda somos o país dos favores. O país em que as leis e os concursos públicos são feitos para serem contornados. O país em que, pelo menos nalgumas áreas, mais vale ter familiares ou amigos bem colocados do que uma boa formação para aceder a um emprego. O país em que os dirigentes quase nunca são responsabilizados por gestão danosa. O país que reelege aqueles que já foram condenados. E queriam que no futebol fosse diferente? 


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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17 junho 2017