“Queria muito enviar-lhe um conjunto de tópicos para um dos seus próximos textos no Diário do Minho. Faculta-me o seu endereço de e-mail?”
“É como lhe digo, é preciso denunciar, e com toda a veemência, a falta de respeito pelos mais idosos. Dedique ao assunto uma das suas crónicas.”
“Também foi um livro que li nas férias. Muito bom. Muito bom, mesmo. Vais escrever sobre ele? Vale a pena recomendá-lo.”
“Não acha curioso que se identifiquem uns lares em que morreram pessoas e se oculte o nome de outros em que, às vezes, até morreu mais gente? Não sei se sabe, mas ninguém disse coisa alguma sobre as mortes no lar chefiado por aquele indivíduo que você sabe que eu não aprecio. Como é que ele se chama?...”
“Vou-lhe dizer: a sociedade manifesta uma complacência generalizada perante qualquer defeito se ele for cometido no mundo do futebol. Vale tudo. Se lhe fizesse uma lista de malfeitorias já apuradas judicialmente ficávamos aqui dois ou três dias. Já viu a qualidade da generalidade dos dirigentes dos clubes do futebol? Já agora: conhece alguém que ouse pôr as mãos no fogo pela probidade de algum deles? Leia o Correio da Manhã ou o Jornal de Notícias e repare na quantidade de vigarices que eles são acusados de cometer. Pois é… Como é que a sociedade tolera gente de tal calibre? Não tem vontade de escrever sobre esta demissão generalizada?”
“Eu bem sei que você não percebe nada de vacinas, mas não tem uma opinião sobre este sarilho dramático que estamos a viver?”
“Não lhe vou sugerir que escreva sobre refugiados pois ninguém quer saber deles. Os que sofrem no hemisfério sul apenas são um genuíno problema para o Papa Francisco. Por falar em Papa, já sabe quem é o próximo arcebispo de Braga? Quer que lhe dê uma excelente sugestão?”
“E a violência doméstica? Não é um assunto gravíssimo? Veja se pega no tema.”
“Eu estava sentado numa esplanada no Largo de S. Paulo. De repente, um estrangeiro que contemplava a fachada da Igreja de S. Paulo tropeça num daqueles pequenos degraus que se inventam para os arranjos urbanísticos e estatela-se no chão. Se quiser indico-lhe a hora exacta em que isso ocorreu. É que eu desliguei o telemóvel para ir a correr ajudá-lo. Felizmente, apenas ferimentos superficiais nas mãos. Não imagina a quantidade de pessoas que já se magoou a sério por causa desses pequenos obstáculos que proliferam na cidade. Tem mesmo de escrever alguma coisa sobre isto. À boleia, repare na falta de brio que se manifesta nos passeios desarranjadose no perigo que muitos deles representam. Para não falar nesses degraus que muitas vezes a custo se vêem.”
“Que me diz sobre os burgessos que mandam no Brasil e nos Estados Unidosda América? Feios, porcos e maus, digo-lhe eu. Mas, se quer saber, o gajo da China e o gajo da Rússia podem ser mais apessoados, mas não deixam de ser maus.”
“A verdade é esta: há grandes problemas nacionais e internacionais, mas o que nosinferniza mais a vida são os maus vizinhos, os maus colegas de trabalho, os maus profissionais que nos atendem no comércio ou nos serviços e, no meu caso, o cretino do chefe. Quer que lhe conte o que ele me fez para ver se dá para uma crónica?”
“Já está pronto o artiguinho sobre a Festa do Avante?”
“A ministra da Cultura não lhe parece uma mera amanuense que vai dando dinheiro a quem lhe interessa de entre os que barafustam? Olhe, tem aqui um bom tema.”
“Diga o que pensa sobre esta tragédia toda.”
“E o Rui Pinto? Tem de fazer a defesa do rapaz. Ainda há muita gente que não percebeu a importância do que ele fez e está a fazer.”
“Os seus textos são um bocadinho para o chato. Podia escrever sobre coisas do dia-a-dia da cidade. Podia escrever coisas que ajudassem a melhorar a vida quotidiana das pessoas.”
“Não adianta nada reclamar, mas se a coisa vier no jornal pode ser que a coisa se resolva. O problema não é só meu. Se escrever sobre isso muita gente lhe ficará grata.”
“Não lhe peço para se pôr com adivinhações, mas gostava de saber se acha que poderemos ter um mundo melhor depois da pandemia.”
“Devia referir mais o que está mal no ensino. Também pode explicar por que razão há nas lojas – nas montras ou no interior – tantos cartazes a dizer ‘back to school’ em vez do nosso ‘regresso às aulas’.”
“A minha sugestão é simples: durante algum tempo dá uma volta por uns quantos sítios que lhe vou indicar e repara nos carros estacionados em cima do passeio a impedir a circulação de peões. Depois o excesso de carros topo de gama vai-lhe permitir tirar algumas conclusões sobre a relação que os novos ricos têm com o civismo.”
“A história é, portanto, esta. Mas não se meta nisso.”
“Aceite um conselho: escreva cada texto como se fosse o último a ser escrito.”
“Ia-te sugerir que escrevesses sobre uma cena, mas, afinal, acho que já falaste sobre ela. Mas já não me lembro do que disseste.”
Bom regresso. Tenham cuidado. Olhem por quem mais precisa.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
O regresso

DM
8 setembro 2020