Na quinta-feira de cinzas, no habitual encontro com o clero romano, o papa Francisco, depois de se colocar a confessar sacerdotes por um certo tempo, dirigiu-lhes um discurso profundo sobre a progresso na fé. Contrariamente ao que nele é hábito este texto tem muito mais que as habituais 2 ou 3 páginas. Tem 13. É um trabalho de fundo sobre a fé.
Apoiado em 3 pontos: a memória, a esperança e o discernimento do momento, afirma que a memória radica na fé da Igreja, na fé dos nossos pais; a esperança é aquilo que nos sustenta na fé; e o discernimento do momento é a ocasião de agir, de pôr em prática aquela 'fé que opera por meio da caridade'.
Ou seja, disponho de uma promessa do Senhor que me pôs em caminho. A esperança indica-me o horizonte, guia-me: é a estrela e também aquilo que me sustenta; é a âncora, ancorada em Cristo. E em cada momento do meu viver devo discernir um bem concreto, o passo adiante no amor que posso dar e também a descoberta do modo como o Senhor quer que eu o faça.
A fé exige uma maturação constante. E isto aplica-se tanto ao discípulo como ao missionário, ao seminarista, ao sacerdote, ao bispo.
A fé alimenta-se, nutre-se da memória da aliança que o Senhor fez connosco. Não é um Deus da última hora, mas de uma história de fidelidade com os nossos pais na fé. Ir às raízes é a coisa verdadeiramente revolucionária. Quanto mais lúcida é a memória do passado, tão mais claro se abre o futuro. A fé cresce recordando, relacionando as coisas com a história real vivida pelos nossos pais e por todo o povo de Deus, por toda a Igreja. Por isso a Eucaristia é o Memorial da nossa fé, aquilo que nos situa sempre de novo, quotidianamente, no acontecimento fundamental da nossa salvação: na Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor, centro e ponto de apoio da história. Actualizar este Memorial num Sacramento que se prolonga na vida – isto é progredir na fé. Dizia Santo Alberto Hurtado; «A Missa é a minha vida, e a minha vida é uma Missa prolongada».
A fé sustenta-se e progride graças à esperança, que é a âncora ancorada no Céu, no futuro transcendente, de que o futuro temporal – considerado em forma linear – é só uma expressão. A esperança é aquilo que dinamiza o olhar para trás da fé, que conduz a encontrar coisas novas no passado – nos tesouros da memória – porque se encontra com o próprio Deus que espera poder encontrar face a face no futuro. Além disso, a esperança estende-se até aos limites, em toda a largura e toda a espessura do presente quotidiano imediato, e vê possibilidades novas no próximo e naquilo que se pode fazer aqui, hoje. A esperança é saber ver no rosto dos pobres, que encontro hoje, o mesmo Senhor que virá um dia julgar segundo o protocolo de Mateus 25: «Tudo aquilo que fizestes a um só destes meus irmãos mais pequeninos, foi a Mim que o fizestes».
Assim, a fé progride existencialmente, acreditando neste 'impulso' transcendente que se move – que está activo e operante – para o futuro, mas também para o passado e em toda a amplitude do momento presente. Como Paulo em Gálatas 5, 6, podemos dizer que uma caridade que faz memória activa-se confessando, no louvor e na alegria, que o amor lhe foi dado; uma caridade que, quando olha em frente e para o alto, confessa o seu desejo de dilatar o seu coração na plenitude do Bem maior. Estas duas confissões de uma fé rica de gratidão e de esperança, traduzem-se na acção presente: a fé confessa-se na prática, saindo de si mesmo, transcendendo-se na adoração e no serviço.
No discernimento do momento, uma das tentações mais insidiosas é a do pessimismo estéril. Sabemos que o triunfo cristão é sempre uma cruz, mas uma cruz que, ao mesmo tempo é bandeira de vitória que se leva com a ternura combativa contra os assaltos do mal. Em qualquer caso, somos chamados a ser pessoas-ânfora para dar de beber aos outros, embora por vezes a ânfora se transforme numa pesada cruz. Mas é precisamente na Cruz que, o Senhor, trespassado, se entregou a nós como fonte de água viva. «Não deixemos que nos roubem a alegria, que seria como roubarem-nos o presente, e não deixemos que nos roubem a esperança, o sair, o caminhar – que são as graças que mais peço e faço pedir para a Igreja neste tempo»!
Nota – Dada a riqueza do texto, continuaremos a explorá-lo no próximo artigo. Não perde actualidade neste tempo favorável da Quaresma
Autor: Carlos Nuno Vaz